Que viva o porno!
Na manhã de 18 de Setembro de 1923, uma mulher que andava a fazer uma caminhada pelas montanhas de Santa Mónica descobriu no chão um sapato feminino, um casaco e uma carteira. No interior da carteira, uma nota bizarra, assinada com as iniciais P.E.: “Tenho medo, sou uma cobarde, tenho medo de tudo. Se tivesse feito isto há mais tempo, teria poupado muito sofrimento.” A caminhante olhou para o fundo da ravina e viu o cadáver de uma jovem mulher. Receando meter-se em sarilhos, deixou os objectos nas escadas da esquadra da polícia de Hollywood e depois ligou para lá, a contar o que tinha visto.
Nunca se soube quem era ela, mas a suicida, essa, era uma actriz bela e famosa, nascida no País de Gales, que fizera furor na Broadway e que viera para a Califórnia tentar a sorte no cinema. A vida, contudo, não lhe correu bem: após uma breve presença em palco, num teatro de Los Angeles, onde contracenou com um actor então pouco conhecido, de nome Humphrey Bogart, teve uma aparição fugaz em ThirteenWomen, um thriller psicológico estreado em 1932, no auge da Grande Depressão, em que várias das protagonistas, inclusive a má da fita, acabam por se suicidar das mais diversas formas, todas violentas.
Amputado pelos censores, fustigado pela crítica, o filme foi um fracasso comercial e, para agravar o negrume, os estúdios da RKO não lhe renovaram o contrato. Peg Entwistle, assim se chamava a beldade, tardava em arranjar trabalho e atravessava, ademais, uma crise pessoal profunda, em resultado do seu turbulento casamento com o actor Roberth Keith, de quem se divorciara em 1929, com alegações de crueldade e maus-tratos. Na sexta-feira 16 de Setembro, Peg disse ao tio que ia às compras e visitar uns amigos, mas tomou outro destino: Mount Lee, nas colinas de Hollywood, onde se encontra o lendário letreiro Hollywoodland, em caracteres gigantescos, pintados a branco, com 13 metros de altura por 106 de comprimento. Subiu por uma escada de manutenção existente na parte posterior da letra H, chegou ao topo e lançou-se para o vazio, despenhando-se na ravina em frente, 40 metros abaixo. O relatório da polícia atribuiu a morte a múltiplas fracturas na região pélvica. Peg Entwistle matou-se aos 24 anos, na tormenta de uma depressão profunda, e desde então tornou-se uma figura mítica, tragicamente ilustrativa de que, para muitos, a esmagadora maioria, o sonho de Hollywood se converte quase sempre em pesadelo.
Erigida em 1923 para publicitar um empreendimento imobiliário, a placa Hollywoodland deveria ter estado exposta apenas um ano. Ficou com o tempo e tornou-se um símbolo da indústria cinematográfica então florescente. Apenas com os dizeres Hollywood, é hoje um monumento classificado, cujos direitos de exploração comercial pertencem à Câmara de Comércio de Hollywood. Em meados dos anos 1970, o letreiro ameaçava ruína, tendo perdido até uma das letras O. Foi salvo, imaginem, por Hugh Hefner, o fundador da Playboy, que lançou em 1978 uma campanha de angariação dos 250 mil dólares necessários aos trabalhos de restauro.
Um livro saído há uns tempos, Dirty! Dirty! Dirty! Of Playboys, Pigs, and Penthouse Paupers, de Mike Edison, descreve com pormenor a história dos quatro cavaleiros do apocalipse da pornografia americana: Hugh Hefner, da Playboy; Bob Guccione, o fundador da Penthouse; o recém-falecido Larry Flynt, da Hustler; o malogrado Al Goldstein, da inenarrável Screw. Por muito que os patrões dessas revistas, sobretudo Hefner, se esforçassem por dizer que deram um contributo essencial para a libertação das mulheres, o facto é que o público-alvo das suas publicações sempre foram os homens, e só eles, e que as mulheres, mesmo quando não transformadas em objectos de prazer, eram relegadas para um plano acessório e ornamental, mais do que secundário.
A Playboy foi lançada em Dezembro de 1953, com Marilyn na capa e nas páginas centrais, mas nem o nome nem o símbolo do coelhinho foram invenção de Hefner, antes de um seu compincha, Eldon Sellers, que o convenceu a abandonar o nome Stag (até porque já havia uma publicação com esse nome) e a mascote original, um alce com ar estúpido. Quando lançaram o primeiro número, nem sequer lhe deram data ou numeração, ignorando sequer se a revista iria ter continuidade. Teve. E, graças a Marilyn, foi um sucesso de arromba, com 50 mil exemplares vendidos, cerca de 80% das 70 mil cópias da tiragem inicial. Um ano volvido, as vendas tinham duplicado e, dois anos depois, em 1955, a Playboy estava a vender um milhão de exemplares, duplicados para dois milhões logo no ano seguinte. Além de exibir vedetas seminuas (Bettie Page, Jayne Mansfield, Anita Ekberg), a revista publicou, logo nos primeiros números, textos de John Steinbeck, James Jones, Arthur C. Clarke, Somerset Maugham, Norman Mailer, Philip Roth, John Updike ou Ray Bradbury, com ilustrações de Picasso, entre outros. Não muito depois, em 1962, Miles Davis era o primeiro de uma série lendária de entrevistacadeia dos: Luther King, Malcolm X, Bertrand Russell, Sartre, Genet, Nabokov, McLuhan, Bob Dylan, etc., etc.
Apesar da sua indiscutível qualidade e inegável importância cultural, a Playboy permaneceu uma revista machista e misógina, pouco interessada no prazer feminino, bastando lembrar que a palavra clítoris só deu entrada nas suas páginas em 1966. Por muito que o patrão tentasse estar a par dos novos tempos, tendo até dedicado um número de 1959 à geração beat (com uma playmate beat, claro), o seu universo era outro, era o da sexualidade viril, escrutinada à lupa pelo voyeurismo do Dr. Kinsey, cujo célebre relatório teve em Hefner o efeito de uma epifania. O essencial da revolução sexual e do movimento hippie dos anos 60 passou à margem da Playboy, que permanecia apegada ao materialismo consumista das décadas anteriores, insistindo em propagandear o estereótipo masculino dos carros velozes, whiskies de marca e aparelhagens wi-fi, que proclamava defender as mulheres mas não hesitava em mostrá-las como coelhinhas submissas, sempre disponíveis para satisfazer os caprichos dos macho. Afirmar que a pornografia, soft ou hard, contribuiu para a libertação das mulheres é, no mínimo, caricato e, no máximo, abjecto.
Isto dito, há algo que, queiramos ou não, teremos de creditar a Hefner e aos seus seguidores: o papel decisivo que tiveram na defesa da liberdade de expressão na América e no mundo. O FBI de Edgar Hoover tinha dossiês quilométricos sobre o patrão da Playboy, espiolhou-lhe a vida ao milímetro, intimidou todos os que com ele ousavam colaborar. Os pornógrafos tiveram de enfrentar, vezes sem conta, o moralismo hipócrita da sociedade e a barra dos tribunais; muitos acabaram na ou tiveram de pagar fianças astronómicas para se livrarem dela, outros sofreram processos em que a prisão poderia ir até 90 milhões de anos, com a pena a ser calculada por cada exemplar de publicação obscena enviada pelo correio. Houve comissões presidenciais para estudar o fenómeno pornográfico, centenas de horas de audiências, ameaças permanentes. Uns não resistiram pelo caminho, fecharam portas e mudaram de ramo, outros sucumbiram, como Lenny Bruce ou Ralph Ginzburg.
É importante lembrar tudo isto numa altura em que a liberdade de expressão sofre ameaças de vários lados, até dos mais insuspeitos, existindo, inclusive, abaixo-assinados para calar as perguntas incómodas que os jornalistas fazem aos governantes e às autoridades sanitárias. Num notável artigo recentemente publicado na London Review of Books, Jeremy Harding analisou o avanço do extremismo islâmico em França e, sobre o malogrado professor Paty, que por ter exibido numa aula as caricaturas de Maomé acabou decapitado, concluiu, e bem, que talvez não tenha sido boa ideia ele ter mostrado o Profeta com estrelas no ânus aos seus alunos da disciplina de Educação Cívica. Também talvez não tenha sido boa ideia o professor Caupers ter falado do lóbi gay aos seus alunos, mesmo tendo o cuidado de acrescentar que nada o movia contra os homossexuais e demais minorias. Mal imaginava ele que, 11 anos depois (!), esse anódino escrito despertaria tanto furor persecutório, tanta raiva inquisitorial. Há dias, em mais um exercício de jacobinismo animalesco, os senhores deputados do PAN, que à conta de tanto defenderem os burros parecem-se cada vez mais com eles, propuseram levar o presidente do Tribunal Constitucional ao parlamento, para ser açoitado. Bem precisam tais deputados, e outros, de um curso básico de Constituição (e, já agora, um workshop de bom senso para o pateta do Ascenso) que lhes ministre breves luzinhas sobre separação de poderes e independência dos tribunais.
No dia em que as decisões dos juízes puderem ser escrutinadas pelo poder político, goodbye democracia, adeus Estado de direito. É que João Caupers, convém lembrá-lo, foi escolhido e eleito pelos seus pares, juízes independentes, na perfeição do seu juízo, aliás soberano. Entretanto, num país em que o endividamento atingiu o valor recorde de 268% do PIB, o tema do momento são jardins de buxo. Pois que viva o porno.