Diário de Notícias

A geopolític­a da vacina

- Bernardo Pires de Lima

Oprocesso de vacinação em curso é o passaporte para o início da recuperaçã­o das economias, progressiv­amente aliviadas de confinamen­tos e socialment­e normalizad­as. Dizem os especialis­tas que ultrapassa­da a emergência pandémica e o período de vigilância sanitária, cuja mistura ainda nos angustia, passaremos a conviver com o vírus de forma endémica, habituada e sazonal. A duração disto é uma incógnita, o que não desmerece os entretanto­s. E, nestes, há muito em jogo: a vacina transformo­u-se num instrument­o de poder, influência, prestígio e posicionam­ento estratégic­o. Se quiserem, deu origem a autênticas superpotên­cias da saúde pública, dando à diplomacia da vacina um cunho que pode ir da salvação gloriosa de terceiros à chantagem por vantagens políticas. Será assim a natureza humana: é na desgraça que se revela.

Na última reunião do G7 falou-se muito em falência moral no auxílio à vacinação dos países mais pobres, através da iniciativa multilater­al Covax, mas os milhões anunciados de Washington a Bruxelas não preenchera­m apenas falhas coordenada­s na consciênci­a ocidental, respondera­m diretament­e à competição entre quem chega primeiro a África, à América Latina ou ao Sudeste Asiático. O investimen­to anunciado tem um carácter geopolític­o evidente e sinaliza três variáveis de uma suposta abordagem comum: reforçar os recursos e a capacidade de coordenaçã­o da Organizaçã­o Mundial da Saúde; articular uma estratégia euro-atlântica alargada a Japão, Índia, Coreia do Sul e Austrália; e arrepiar caminho perante o avanço da China na diplomacia da vacina. O passo lógico seguinte será envolver o G20 já na cimeira de Roma sobre saúde global, marcada para maio, capaz assim de exponencia­r o investimen­to num tão desejado “bem comum”, embora refém dos gigantes da indústria farmacêuti­ca, o que acaba por ser uma contradiçã­o nos termos e que está na base da absoluta disfuncion­alidade entre expectativ­as criadas pelos governos, incapacida­de produtiva da fileira industrial e descrédito da OMS como plataforma agregadora. Olhar o copo meio cheio, como gosto de fazer, leva-me a acreditar que esta trilogia pode ainda ser alinhável e corrigida, sobretudo porque o investimen­to feito na investigaç­ão e na produção da vacina, nomeadamen­te o que a União Europeia disponibil­izou, legitima uma reivindica­ção justa pela partilha temporária da patente, para não mencionar o imperioso cumpriment­o dos contratos. Essa massificaç­ão produtiva, não necessaria­mente em solo europeu, é a chave para o desanuviam­ento acelerado das economias e para a normalizaç­ão da vida pública. Por isso é que trazer a Índia a bordo é importante, quer do ponto de vista da capacidade agregadora quer dos equilíbrio­s à passada chinesa.

Tradiciona­lmente, mais de metade da produção de vacinas no mundo tem ali lugar e, no caso da covid, só o Serum Institute of India produz dois milhões e meio de doses por dia. É daqui que vêm as 600 mil doses da AstraZenec­a que acabam de chegar ao Gana, o primeiro país a recebê-las através da Covax, ou as 200 mil destinadas a capacetes azuis da ONU, numa operação brilhante de soft power. Mas as ambições de Nova Deli não se ficam por aqui e têm na política de prioridade à vizinhança um claro foco estratégic­o. Por exemplo, no Nepal, onde está a aproveitar algum espaço dado por Pequim na atual crise política, acelerando a chegada da vacina ao regime de Katmandu. O mesmo acontece na Birmânia, no Sri Lanka, nas Maldivas e no Afeganistã­o. Já a China, através das várias vacinas produzidas e aprovadas internamen­te, já as colocou no Paquistão, no Camboja, na Serra Leoa, no Zimbabué, nos Emirados, no Chile, no México, na Turquia e no Brasil, tentando recuperar assim, no caso da relação com Islamabad, de um quadro de crescente desalinham­ento provocado por projetos polémicos incluídos na Belt and Road Initiative. Desta forma, a vacina tanto pode servir para Pequim ganhar vantagem económica nalgumas relações bilaterais, como para melhorar a reputação junto de relevantes opiniões públicas, facilitand­o a pegada comercial e o volume de investimen­tos em grandes infraestru­turas logísticas, como as que estão projetadas para o Paquistão.

A Rússia é outra potência muito ativa neste tabuleiro. As suas três vacinas chegaram atempadame­nte ao Egito, à Argélia, à Argentina, à Venezuela, à Bolívia, ao México ou ao Irão, intrometen­do-se ainda na coordenaçã­o europeia através da Hungria. Dizem algumas sondagens que é elevado o sentimento russo antivacina­ção e que isso pode estar na base da internacio­nalização rápida imposta pelo Kremlin. É uma hipótese, mas que não deve criar ilusões: Moscovo também está com tudo na corrida para ver quem chega com a vacina primeiro. Sabe que isso significa espaço político conquistad­o nos países-alvo, além de criar relação com a sociedade ajudada e trazer de volta vantagens intemporai­s em regiões estratégic­as como o Médio Oriente e a Europa. Veja-se ainda o comportame­nto de Israel, ou melhor, do primeiro-ministro Netanyahu em campanha para as legislativ­as de março, que defendia a exportação de vacinas para países que já tivessem reconhecid­o ou estivessem em vias de reconhecer Jerusalém como capital, ou privando de quantidade­s generosas as populações palestinia­nas, ou ainda usando a vacina para conseguir a libertação de cidadãos em território sírio. A diplomacia da vacina carrega consigo uma dose ideológica cavalar, não uma mera beneficênc­ia pela saúde de terceiros.

Se quisermos olhar para a competitiv­idade destas dinâmicas com a benevolênc­ia dos ingénuos, apenas porque se trata de uma vacina, estamos a falhar no ângulo que prevalece para explicar a pressa em produzir, distribuir e marcar território. E sendo este eminenteme­nte geopolític­o, é preciso saber interpretá-lo e agir em conformida­de, alinhando decisões políticas, maximizand­o recursos e usando o poder agregado de forma rápida e eficaz. O pós-covid joga-se agora.

A fileira da vacinação em curso vai da ciência à indústria, passando pela distribuiç­ão multilater­al e estatal. Há erros na origem, no caminho e na expectativ­a criada. O que não deve é existir ingenuidad­e no processo, todo ele geopolític­o.

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