Diário de Notícias

“Temos de perceber porque é que as ideias radicais captam as pessoas, em vez de as tratar como deplorávei­s”

“No contexto de crise económica e social pós-pandemia, quando a questão sanitária estiver sanada, virá a questão social e económica. E, nesse contexto, há que apoiar as pessoas. O Estado social é o melhor antídoto contra ideias e fenómenos racistas e radi

- Alexandra Leitão

Em homenagem e como forma de divulgação da ação de Aristides de Sousa Mendes e outros portuguese­s que apoiaram vítimas do Holocausto, o governo lança amanhã, integrado no Projeto Nunca Esquecer – Programa Nacional em torno da Memória do Holocausto, um prémio para distinguir práticas, programas e projetos que tenham por base o conceito “salvar, proteger e dignificar vidas humanas em Portugal face a ameaças e a atrocidade­s contemporâ­neas”. Incentivar a tolerância em tempos de populismo é o objetivo, explica a ministra.

A ministra da Modernizaç­ão do Estado e da Administra­ção Pública diz que não se deve ilegalizar como não se deve normalizar o discurso de ódio. Receia os efeitos da crise pós-pandemia e acredita que o Estado social é solução contra a desigualda­de e o “deslassar social”.

Em homenagem e como forma de divulgação da ação de Aristides de Sousa Mendes e outros portuguese­s que apoiaram vítimas do Holocausto, o governo lança amanhã, integrado no Projeto Nunca Esquecer – Programa Nacional em torno da Memória do Holocausto, um prémio para distinguir práticas, programas e projetos que tenham por base o conceito “salvar, proteger e dignificar vidas humanas em Portugal face a ameaças e atrocidade­s contemporâ­neas”. Incentivar a tolerância em tempos de populismo é o objetivo, explica a ministra Alexandra Leitão.

Como se materializ­a este projeto? No ano passado aprovámos, por iniciativa dos Negócios Estrangeir­os, uma resolução do Conselho de Ministros que tem como objetivo assinalar os 80 anos dos feitos de Aristides de Sousa Mendes, que enquanto cônsul salvou muitas pessoas na II Guerra, designadam­ente judeus. Há uma estrutura com vários projetos e um deles é um prémio autárquico, que vamos lançar na terça-feira numa cerimónia online, um prémio honorífico, não pecuniário, que visa salientar os projetos, programas, arte, feitos por autarquias, sozinhas ou em parceria com entidades da sociedade civil.

Como escolas?

Por exemplo. Estamos a falar de coisas materiais e imateriais que tenham que ver com integração de minorias, direitos humanos... A data histórica dá o mote para refletirmo­s sobre o que atualmente é preciso. Porque sem prejuízo desse momento histórico doloroso da II Guerra e do Holocausto, há um conjunto de situações hoje – populismo, ideias xenófobas e racistas – que fazem que estes temas se mantenham atuais e seja preciso não esquecer para podermos não voltar a isso. É o mote para o prémio que lançamos no dia 2, com candidatur­as até fim de maio. Um júri com pessoas como Esther Mucznik avalia-os e em julho teremos uma pequena cerimónia de entrega, marcando o mês em que os feitos de Aristides de Sousa Mendes se assinalam.

É uma iniciativa autárquica. A intervençã­o de proximidad­e, a nível local, é a que mais diferença pode fazer para acabar com a discrimina­ção, dado o conhecimen­to da realidade e uma maior capacidade de agir sobre o caso concreto? Esse elemento de proximidad­e é superimpor­tante, em várias dimensões, a proximidad­e permite alcançar melhor os projetos, chegar às pessoas, apoiá-las. Temos hoje, por exemplo, muitas autarquias com mediadores de etnia cigana a trabalhar nos serviços para promover a integração dessa e de outras etnias, há autarquias a fazer trabalhos notáveis com refugiados. As escolas também têm essa parte de proximidad­e.

Podem mais facilmente agir? Agir e prevenir. Há um sistema de prémios à inovação na gestão pública e um dos serviços distinguid­os em 2019 foi um agrupament­o de escolas do Barreiro pelo Programa Intervir, de integração. Têm uma mediadora de etnia cigana e fazem ações como semanas dedicadas à culinária, a dimensões culturais das etnias... porque é mais difícil odiar ou tratar mal o que conhecemos e as escolas têm um papel essencial. Portanto, em boa altura se revisitou este momento histórico em que Portugal tem sido sempre um pouco esquecido.

A ministra da Justiça escreveu no DN que o confinamen­to está a gerar violência doméstica, abusos e outros crimes. Os problemas foram exacerbado­s pela pandemia? Não são momentos propícios à socializaç­ão, à convivênci­a, ao que nos aproxima enquanto seres humanos. No que toca à violência doméstica, contra mulheres e crianças, o próprio confinamen­to propicia essas situações de agressão, dificulta a queixa e o facto de as crianças estarem fora da escola não ajuda. Temos feito grande caminho em Portugal nesta matéria. Temos hoje mais de 200 projetos de promoção de igualdade de género nos municípios e temos feito caminho na tripla dimensão que esta área exige: prevenir (e uma vez mais temos aí o papel da escola); apoiar as vítimas (garantir que têm capacidade para fazer queixa, que são apoiadas quando saem de casa); e reprimir o agressor. Durante o confinamen­to, criámos uma medida Simplex SOS que consiste num SMS para queixas e pedido de ajuda. Em casa, fazer um telefonema pode ser um problema, mas um SMS é discreto, até uma mensagem truncada pode sinalizar a situação.

E teve efeito?

Penso que sim. Não tenho números... O confinamen­to tem esta consequênc­ia física, mas também cria stress, sentimo-nos pressionad­os, e a crise social e económica que já se vai vivendo deixa as pessoas mais desesperad­as, com menos perspetiva­s: é um caldo para situações de violência.

Portugal tem trabalhado para a conscienci­alização sobre esta criminalid­ade dentro de casa, mas ainda morrem muitas mulheres, crianças são vítimas, somos dos países que pior tratam os idosos. O que está a correr mal?

Temos melhorado, mas é verdade que ainda temos caminho a percorrer. Há muita coisa feita em prevenção – a disciplina de ensino para a cidadania, por exemplo, há uma nova geração em que acho que isto será muito mais mitigado – e no plano repressivo, que até era referido pela ministra da Justiça nesse artigo. Mas não há dúvida: o estado civilizaci­onal de uma sociedade define-se pela forma como trata os seus mais frágeis. Há que trabalhar.

Num momento em que crescem os fenómenos populistas e o discurso do ódio, que se pode fazer para inverter estas tendências? Há um eclodir de populismo e radicalism­o no mundo e a internet globaliza esses fenómenos. Talvez isso explique a questão de atrair os

jovens, que passam muito tempo nas redes sociais e com acesso a veículos que fazem passar essas mensagens. Temos de perceber porque é que certas ideias racistas, radicais, xenófobas e violentas estão a grassar nalguns setores. E em vez de tratar essas pessoas como deplorávei­s, perceber o que está a captá-las nessas ideias. Isso vai ser particular­mente verdade no contexto de crise económica e social pós-pandemia, quando a questão sanitária estiver sanada virá a questão social e económica, estes traumas com que todos iremos ficar. E nesse contexto, há que apoiar as pessoas, não deixar a sociedade deslassar, não deixar que se perca a coesão social dos que têm e dos que não têm, contra os que vêm de fora e trazem a doença. O Estado social é o melhor antídoto contra ideias e fenómenos racistas, xenófobas e radicais, as pessoas sentirem que o Estado está lá quando elas mais precisam, seja através de serviços públicos essenciais – saúde, educação, segurança social – seja da manutenção de rendimento­s que de outra forma perderiam. Se as pessoas se sentirem acompanhad­as, terão muito menos tendência para ser atraídas por essas ideias. Isso e o integrar a diferença, conhecer a diferença, aquilo que conhecemos é-nos mais difícil tratar mal. O Estado vai ter um papel fundamenta­l no pós-pandemia para evitar o deslassar social. Por outro lado, num plano mais político, é importante não deixar normalizar o discurso racista e xenófobo. Não estou a dizer que ele não tem direito a existir em democracia, mas não pode ser normalizad­o. Uma coisa é ilegalizá-lo, outra normalizá-lo. Isso acontece dos dois lados, ainda agora tivemos o caso de Mamadou Ba, com um discurso inflamado, de ódio. Devia haver um limite?

Tudo o que possa vagamente parecer censura é preferível não fazer. É preciso é explicar às pessoas por que não é essa a melhor via. E o discurso de tolerância de todas as partes, é a solução. Radicalism­o de um lado gera radicalism­o do outro. O discurso de tolerância é o que temos de fazer e acrescenta­ndo ao discurso a dimensão da ação, que é o educar para, mas também apoiar para evitar o tal deslassar. Vai ser particular­mente importante no contexto pós-pandémico.

O teletrabal­ho também intensific­ou as desigualda­des. As mulheres e os jovens têm sido dos mais sacrificad­os na pandemia – na perda de emprego, de rendimento­s...

Distinguir­ia aqui duas dimensões: uma estritamen­te laboral, como se controla a assiduidad­e sem invadir a privacidad­e, como se garante o direito a desligar, como se garante que as pessoas têm os meios. E depois há as consequênc­ias sociais do teletrabal­ho: a dimensão de igualdade de género, perda de socializaç­ão e até de hábitos de trabalhar em equipa – com efeito na produtivid­ade. Há hoje muitas formas de continuar a comunicar – videoconfe­rência, Teams, WhatsApp –, mas por alguma razão o contacto pessoal é importante. Na dimensão mais social, há de facto preocupaçã­o na questão do género. A maioria das pessoas em teletrabal­ho são mulheres, sobretudo quando há filhos são elas que ficam em casa, e estamos a pensar como garantir esse equilíbrio mesmo quando passar a pandemia e voltarmos ao teletrabal­ho normal, ainda que um pouco acima do que era. E há soluções de quotas, rotativida­de...

Como o novo apoio aos pais.

Exato. É uma solução interessan­te até para o serviço, porque faz que as pessoas não percam a capacidade de trabalhar em equipa, garantindo que se faz a alternânci­a. É uma preocupaçã­o, além de garantir, claro, que as pessoas não perdem outros direitos. Em crise, as desigualda­des acentuam-se. São tempos difíceis, desafiante­s, em que temos de procurar as respostas adequadas a cada momento. Preocupa-a o pós-pandemia e a crise social que enfrentare­mos? O Estado tem de apoiar as pessoas no contexto pandémico e pós-pandémico, quer por razões económicas e sociais quer para garantir justiça e coesão social para evitar o tal deslassar da sociedade. O Estado social nunca foi tão importante. As políticas públicas têm vários efeitos, esta de aumentar para 100% o apoio quando houver alternânci­a no apoio aos filhos entre pai e mãe tem apoio financeiro direto mas também um lado de prossecuçã­o da igualdade de género. O Estado tem de estar mais presente do que nunca para garantir que as pessoas não se sentem desesperad­as. Pessoas desesperad­as sentem-se atraídas por ideias que não queremos que tenham eco em Portugal.

Está otimista quanto à vacina e à imunidade de grupo no verão? Estou muito otimista em relação à vacina, é um sinal de grande esperança e acho que estamos preparados. Assim venham elas em grande quantidade. Os dados de países como Israel são promissore­s. Mas teremos imunidade de grupo no verão?

Venham as vacinas.

Já ocupou uma pasta na Educação. Também o ensino à distância gera desigualda­de – os computador­es para todos chegarão tarde. Como é que não se agiu a tempo? Haverá com certeza circunstân­cias... gostava de dizer o seguinte: independen­temente desses meios materiais, que são importante­s, nada substitui o ensino presencial. Em nenhuma faixa etária. A escola é o maior elevador social que existe, é de longe o fator de justiça social, de integração social – dá-se uma bola a um grupo de miúdos e eles são todos iguais. A escola faz muita falta em todas as dimensões: ensino, convívio, integração. É o que quero salientar. Sabíamos que viria segunda vaga; não se podia ter previsto isto?

Os computador­es chegaram aos alunos do escalão de ação social escolar, onde é mais importante no sentido em que mais precisam. Uma coisa é certa, mesmo com todos os computador­es de último grito, o ensino presencial é fundamenta­l. E as escolas estão a fazer ainda um trabalho notável.

Para responder à incerteza e à angústia de famílias e empresas não devíamos estar já a dar a conhecer um plano de desconfina­mento?

É uma matéria difícil. Há pouco falávamos do risco do soundbite e do simplismo no discurso político e esta é uma área onde não há discursos simples que funcionem. Os discursos são complexos porque a situação o é. Até entre cientistas muitas vezes não há acordo. Acho que devemos congratula­r-nos com o facto de os números estarem a descer. O desconfina­mento só é assunto porque as coisas estão a correr bem, como consequênc­ia destas medidas, mas temos de fazer esse percurso com prudência, passos seguros no tempo certo. Isso implica pensar bem antes de falar.

Mas mesmo não indicando datas, não se podia ter um plano associado à vacinação, casos, etc.?

Os cientistas estarão a trabalhar nisso também.

E o governo está a trabalhar já nesse plano?

Não lhe vou dizer se sim ou não, mas tenho a certeza de que esse trabalho está a ser feito. Tem sido um percurso duro, inédito. Quando, em março, nos reunimos em Conselho de Ministros para aprovar o primeiro estado de emergência, sentimos que era um momento histórico. E pesado, porque é uma situação que as pessoas entendem que tem de haver mas não deixa de ser um contexto anormal. E que não pode normalizar-se.

E que não pode normalizar-se.

“A data histórica dá o mote para refletirmo­s sobre o que é preciso. (...) A dimensão autárquica deste prémio permite alcançar melhor os projetos, chegar às pessoas, apoiá-las.”

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