Empresa de segurança envolvida na morte mantém contratos com SEF
Funcionários da empresa de segurança Prestibel que cometeram ilegalidades várias podem ainda ser acusados de crimes, mas não foram sequer alvo de procedimento disciplinar interno. SEF manteve contratos com a empresa, tendo até celebrado mais – o último é já de 2021.
Quando a 24 de fevereiro foi ouvido pelo tribunal como testemunha no julgamento pelo homicídio de Ihor Homeniuk, Paulo Marcelo, funcionário da empresa de segurança privada Prestibel, contratada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para fazer a vigilância e gestão do centro de detenção do aeroporto de Lisboa onde o cidadão ucraniano morreu, assumiu, tal como o tinha feito perante a Polícia Judiciária (PJ), que com o seu colega Manuel Correia manietara o cidadão ucraniano com fita adesiva – um ato ilegal que é equiparado a tortura no relatório da Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) sobre a morte de Ihor. No entanto, esclareceu também, quando questionado sobre isso pelo advogado da viúva de Ihor, que não sofreu qualquer procedimento disciplinar na empresa, e que continua a trabalhar como vigilante para a mesma, agora num hospital público lisboeta.
Do mesmo modo, a empresa em causa, que tem, como se constata no Portal Base, quase 200 contratos com diversas entidades do Estado celebrados desde o início de 2020 e faz a segurança de todas as instalações do SEF, não sofreu qualquer consequência pelas ações e omissões assumidas pelos seus funcionários e que tanto o Ministério Público, na sua acusação de homicídio aos três inspetores daquela polícia, como a IGAI censuram fortemente. Aliás, a Prestibel não só manteve todos os contratos que tinha com o SEF à data da morte como os viu renovados.
Assim, em agosto e setembro de 2020 a Prestibel voltou a celebrar contratos de “aquisição de serviços de vigilância humana nas instalações do SEF”, um dos quais especificamente para o centro de detenção do aeroporto de Lisboa – o denominado Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária – onde se deu a morte de Ihor e nos mesmos termos do anteriormente contratado para o mesmo local. E já a 28 de janeiro de 2021, a nova direção do SEF (recorde-se que Cristina Gatões, que dirigia esta polícia quando Ihor morreu, se demitiu a 9 de dezembro) celebrou outro contrato, que parece ser relativo a todo o universo das respetivas instalações, incluindo outros centros de detenção de estrangeiros, como a Unidade Habitacional de Santo António, ou Centro de Instalação Temporária do Porto. Todos estes contratos foram celebrados por ajuste direto.
Conduta de vigilantes “imprópria e reprovável”
Esta informação foi recolhida pelo jornal no Portal Base, já que, ao ser questionado sobre a sua relação contratual com a Prestibel, respetiva dimensão e justificação, o SEF não respondeu. Não esclareceu quantos contratos ativos tem com a Prestibel nem a quanto orçam, que critério presidiu à contratação e se existe formação específica de vigilantes.
Esta polícia, cuja reestruturação foi anunciada pelo governo em dezembro - na mesma data em que foi dada a conhecer a demissão da diretora Cristina Gatões-, adianta porém estar a “preparar o lançamento de um concurso internacional para a prestação de serviços de vigilância nas instalações onde estes forem considerados necessários”, devendo o referido concurso ser “lançado durante o próximo mês de março” (as perguntas do DN foram enviadas e respondidas em fevereiro).
Certifica igualmente que, “no âmbito da missão e das competências do SEF, foi aprovada, também, a reativação da carreira de vigilância e segurança”, a qual conta, “atualmente, com seis profissionais” prevendo “o respetivo mapa de pessoal já em 2021 um acréscimo de mais 21 vagas.” E acrescenta: “Entretanto, até à conclusão do todo o processo, os serviços de vigilância humana nas instalações do SEF continuarão a ser assegurados pela empresa Prestibel.”
Apesar de garantir que “a equipa de segurança destacada no EECIT (...) foi substituída na sua quase totalidade, sendo que apenas dois dos elementos da equipa anterior, e que não estavam ao serviço entre os dias 10 e 12 de março de 2020 (quando ocorreram os acontecimentos que conduziram à morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk), continuam a exercer funções”, o SEF não quis esclarecer que consequências retirou das observações da IGAI sobre a formação (falta dela, no caso) e conduta dos funcionários da Prestibel nem que justificação apresenta, em face dessas observações, para não ter anulado os contratos que detém com aquela.
No entanto, o relatório da IGAI (que, recorde-se, é a entidade com competência para fiscalizar as polícias) sobre a morte de Ihor Homeniuk é muito claro na qualificação da atuação dos oito vigilantes da Prestibel que estiveram de serviço nos dois turnos no EECIT correspondentes às últimas 16 horas da vida do cidadão ucraniano: “Conduta imprópria e reprovável na forma como utilizaram fita adesiva para restringir os movimentos do cidadão Ihor, impedindo-o de movimentar livremente os seus membros superiores e inferiores”; “Conduta imprópria e reprovável na forma como negligenciaram e negaram a prestação de auxílio ao cidadão Ihor, permitindo que se mantivesse manietado de forma indigna e desumana durante cerca de sete horas, sem providenciar pela satisfação das suas necessidades fisiológicas básicas”; “Independentemente do seu vínculo laboral (Prestibel, SEF, Cruz Vermelha Portuguesa) sublinha-se a postura generalizada de desinteresse pela condição humana e desconhecimento dos procedimentos a adotar em determinadas situações, seja por ausência de uma orientação clara sobre as ações a praticar em determinados momentos, seja por falta de interesse em saber como agir”.
SEF ignora totalmente as recomendações de IGAI
A IGAI frisa ainda a “ausência de perfil definido e de formação específica dos vigilantes”, assim como “a total ausência de supervisão e controlo da atividade exercida” pelos mesmos.
E conclui: “A situação [de externalização para a esfera privada da guarda efetiva de cidadãos estrangeiros] revelou-se crítica nos autos, pois permitiu a total ausência de supervisão e controlo da atividade exercida pelos vigilantes que, de forma consciente e deliberada, manietaram o cidadão ucraniano com fita adesiva, desobedeceram às indicações transmitidas pelos inspetores do SEF, e se negaram a prestar qualquer tipo de assistência e auxílio ao cidadão, com o fundamento de que não teriam autoridade para o fazer sabendo de antemão que este não se podia valer a si próprio nem estaria em condições de pedir auxílio.”
Seguranças são ainda suspeitos de cumplicidade no “cozinhar” do relatório, tentando fazer vingar a tese de “morte natural”.
Não é de resto a primeira vez que a IGAI alerta para o perigo, inaceitabilidade e duvidosa legalidade de transferir para a esfera privada a guarda de cidadãos estrangeiros – que corresponde, nestas circunstâncias, a contratar uma empresa privada para guardar reclusos, já que os cidadãos em causa estão nessa condição (e, como se constatou, com menos direitos que os conferidos aos presos nas penitenciárias portuguesas).
Pelo menos numa outra ocasião, num relatório de 2015 e no âmbito de uma investigação à denúncia de agressões a um cidadão estrangeiro por parte de vigilantes da Prestibel na Unidade Habitacional de Santo António, ou CIT do Porto – os relatórios da IGAI não são públicos, pelo que o DN não pode certificar que não sucedeu outras vezes – foram feitas as mesmas advertências: “Em termos práticos, a conduta irregular de um vigilante, nomeadamente para com os utentes, não pode ser sancionada pelo ordenamento disciplinar estadual, não se vislumbrando que este possa desempenhar a sua função sem que esteja enquadrado, de facto, por funcionário responsável do Estado, no caso, inspetor do SEF. A situação descrita, para além de acarretar sérias dúvidas sobre a sua conformidade legal, envolve um potencial de risco elevado de ocorrências nefastas ao bom funcionamento do CIT, que importa e urge colmatar.”
Como se constata, a urgência referida pela IGAI foi ostensivamente desconsiderada pelo SEF, que não só continuou a entregar a guarda de detidos estrangeiros à Prestibel como, no caso do EECIT, permitiu que este funcionasse sem qualquer coordenação por parte da entidade estatal (o lugar de inspetor coordenador daquele equipamento estava vago aquando da morte de Ihor).
Mais suspeitas
Mesmo após a tragédia, e da assunção pelo SEF da responsabilidade pela mesma, indemnizando a família de Ihor Homeniuk em cerca de 800 mil euros, esta polícia nada fez para responsabilizar a Prestibel pelas ações dos seus funcionários.
Isto apesar de nos contratos assinados pelo SEF com a mesma se especificar que esta “é responsável pelos danos causados ao primeiro outorgante ou aos destinatários dos serviços objeto do contrato” (no caso do EECIT, os detidos, incluindo naturalmente Ihor), e que os seus funcionários têm de “informar, por escrito, o responsável das instalações de quaisquer situações anómalas que ocorram durante o período de serviço”.
Além de, como já referido, terem manietado Ihor com fita adesiva (não podiam manietá-lo de nenhuma forma, uma vez que não possuem legitimidade para tal), de o terem assim mantido mesmo depois de, na madrugada de 11 para 12 de março, um enfermeiro da CruzVermelha lhes ter dito que aquela situação era perigosa e deviam retirar as fitas adesivas, e de não haverem denunciado as agressões ao cidadão ucraniano por parte dos três inspetores que dizem ter constatado ou feito alguma coisa para o socorrer, os funcionários da Prestibel são ainda suspeitos de cumplicidade no “cozinhar” do relatório de ocorrência levado a cabo pelo SEF para tentar fazer vingar a tese da “morte natural” de Ihor, e das alegações nele constantes de que este teria sido violento e agredido um dos vigilantes (Paulo Marcelo), tendo-o posto a coxear.
Esta alegação, que o próprio Paulo Marcelo negou perante a PJ e também em tribunal, num depoimento extremamente contraditório e confuso, foi apresentada pelo relatório de ocorrência do SEF como o motivo do envio dos três inspetores ora acusados ao EECIT para “falar” com o cidadão ucraniano, depois de um dos seguranças – Rui Rebelo – ter ido, na manhã de 12 de março, ao encontro do então diretor de Fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques, para alegadamente se queixar do comportamento de Ihor. Foi Sérgio Henriques que deu a ordem que se consubstanciou na “visita” dos três inspetores a Ihor. Visita na qual, como é sabido, se dirigiram para a sala onde este estava isolado e manietado antecipando violência, já que um deles (Luís Silva) empunhava um bastão - considerado pelo MP arma proibida, o que levou à acusação deste arguido também por esse crime - na mão.
Seguranças acusados de mentir ao tribunal
Aliás, todos os seis funcionários ou ex-funcionários da Prestibel que até agora depuseram ante o tribunal no julgamento (uma ex-funcionária foi ouvida em declarações para memória futura, uma vez que ia abandonar o país), e que aparentemente partilham o mesmo advogado, se contradisseram de forma flagrante durante o testemunho e face a anteriores declarações à Policia Judiciária.
Em relação a três deles – Paulo Marcelo, Manuel Correia (os dois que reconheceram ter manietado Ihor com fita adesiva) e Rui Rebelo -, a defesa dos três inspetores do SEF acusados de homicídio requereu a extração de certidão das respetivas declarações, para que sejam acusados do crime de falsidade de depoimento (vulgo perjúrio).
Mas ao longo das seis sessões do julgamento ficou também claro que os advogados de Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa (os inspetores acusados), tentam demonstrar, recorrendo às imagens de videovigilância, que há indícios de que Ihor foi agredido por vigilantes da empresa privada.
Aliás durante o inquérito criminal foi ventilada a hipótese de que poderia haver outros acusados além dos três inspetores do SEF, nomeadamente funcionários da Prestibel, quer por terem manietado ilegalmente o detido, quer por omissão de auxílio. Não foi essa a opção do Ministério Público, porém – mesmo se na acusação é frisada a ilegalidade das ações de Manuel Correia e Paulo Marcelo.
A empresa Prestibel não fez até, ao momento, qualquer esclarecimento público sobre a matéria atinente ao caso Ihor. Questionada pelo Público, em novembro de 2020, sobre eventuais consequências disciplinares para os seus funcionários, não respondeu. O presidente da Associação de Empresas de Segurança, ex-bastonário da Ordem dos Advogados Rogério Alves, certificou ao mesmo jornal que “cabe às entidades patronais verificar se houve violação dos deveres de conduta e em que medida são fundamento para a abertura de um processo disciplinar”.
Aparentemente, e a crer no que Paulo Marcelo afirmou em tribunal, a Prestibel não considera violação dos deveres de conduta que funcionários seus tenham manietado uma pessoa, que se tenham apercebido de esta sofrer agressões, não denunciando o facto nem a socorrendo, e aceitado participar no encobrimento daquilo que o Ministério Público reputa de homicídio qualificado.
Quiçá a Prestibel considera que uma situação como a que levou à morte de Ihor se enquadra no “dever de sigilo” a que se obriga nos contratos com o SEF, nos quais se lê: “O segundo outorgante deve guardar sigilo de toda a informação relativa ao 1º outorgante de que possa ter conhecimento ao abrigo ou em relação com a execução do contrato, sendo vedado o seu uso ou modo de aproveitamento que não o destinado diretamente à execução do mesmo.”
O contrato exclui apenas deste dever “a informação do domínio público, bem como a que seja forçado a revelar por força de lei, por determinação judicial ou por qualquer outra entidade reguladora ou administrativa competente para o ato.”
Relatório da IGAI diz que os oito vigilantes da Prestibel tiveram “conduta imprópria e reprovável na forma como usaram fita adesiva (...) e negligenciaram e negaram auxílio”.