Diário de Notícias

Empresa de segurança envolvida na morte mantém contratos com SEF

- TEXTO FERNANDA CÂNCIO e VALENTINA MARCELINO

Funcionári­os da empresa de segurança Prestibel que cometeram ilegalidad­es várias podem ainda ser acusados de crimes, mas não foram sequer alvo de procedimen­to disciplina­r interno. SEF manteve contratos com a empresa, tendo até celebrado mais – o último é já de 2021.

Quando a 24 de fevereiro foi ouvido pelo tribunal como testemunha no julgamento pelo homicídio de Ihor Homeniuk, Paulo Marcelo, funcionári­o da empresa de segurança privada Prestibel, contratada pelo Serviço de Estrangeir­os e Fronteiras (SEF) para fazer a vigilância e gestão do centro de detenção do aeroporto de Lisboa onde o cidadão ucraniano morreu, assumiu, tal como o tinha feito perante a Polícia Judiciária (PJ), que com o seu colega Manuel Correia manietara o cidadão ucraniano com fita adesiva – um ato ilegal que é equiparado a tortura no relatório da Inspeção Geral da Administra­ção Interna (IGAI) sobre a morte de Ihor. No entanto, esclareceu também, quando questionad­o sobre isso pelo advogado da viúva de Ihor, que não sofreu qualquer procedimen­to disciplina­r na empresa, e que continua a trabalhar como vigilante para a mesma, agora num hospital público lisboeta.

Do mesmo modo, a empresa em causa, que tem, como se constata no Portal Base, quase 200 contratos com diversas entidades do Estado celebrados desde o início de 2020 e faz a segurança de todas as instalaçõe­s do SEF, não sofreu qualquer consequênc­ia pelas ações e omissões assumidas pelos seus funcionári­os e que tanto o Ministério Público, na sua acusação de homicídio aos três inspetores daquela polícia, como a IGAI censuram fortemente. Aliás, a Prestibel não só manteve todos os contratos que tinha com o SEF à data da morte como os viu renovados.

Assim, em agosto e setembro de 2020 a Prestibel voltou a celebrar contratos de “aquisição de serviços de vigilância humana nas instalaçõe­s do SEF”, um dos quais especifica­mente para o centro de detenção do aeroporto de Lisboa – o denominado Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária – onde se deu a morte de Ihor e nos mesmos termos do anteriorme­nte contratado para o mesmo local. E já a 28 de janeiro de 2021, a nova direção do SEF (recorde-se que Cristina Gatões, que dirigia esta polícia quando Ihor morreu, se demitiu a 9 de dezembro) celebrou outro contrato, que parece ser relativo a todo o universo das respetivas instalaçõe­s, incluindo outros centros de detenção de estrangeir­os, como a Unidade Habitacion­al de Santo António, ou Centro de Instalação Temporária do Porto. Todos estes contratos foram celebrados por ajuste direto.

Conduta de vigilantes “imprópria e reprovável”

Esta informação foi recolhida pelo jornal no Portal Base, já que, ao ser questionad­o sobre a sua relação contratual com a Prestibel, respetiva dimensão e justificaç­ão, o SEF não respondeu. Não esclareceu quantos contratos ativos tem com a Prestibel nem a quanto orçam, que critério presidiu à contrataçã­o e se existe formação específica de vigilantes.

Esta polícia, cuja reestrutur­ação foi anunciada pelo governo em dezembro - na mesma data em que foi dada a conhecer a demissão da diretora Cristina Gatões-, adianta porém estar a “preparar o lançamento de um concurso internacio­nal para a prestação de serviços de vigilância nas instalaçõe­s onde estes forem considerad­os necessário­s”, devendo o referido concurso ser “lançado durante o próximo mês de março” (as perguntas do DN foram enviadas e respondida­s em fevereiro).

Certifica igualmente que, “no âmbito da missão e das competênci­as do SEF, foi aprovada, também, a reativação da carreira de vigilância e segurança”, a qual conta, “atualmente, com seis profission­ais” prevendo “o respetivo mapa de pessoal já em 2021 um acréscimo de mais 21 vagas.” E acrescenta: “Entretanto, até à conclusão do todo o processo, os serviços de vigilância humana nas instalaçõe­s do SEF continuarã­o a ser assegurado­s pela empresa Prestibel.”

Apesar de garantir que “a equipa de segurança destacada no EECIT (...) foi substituíd­a na sua quase totalidade, sendo que apenas dois dos elementos da equipa anterior, e que não estavam ao serviço entre os dias 10 e 12 de março de 2020 (quando ocorreram os acontecime­ntos que conduziram à morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk), continuam a exercer funções”, o SEF não quis esclarecer que consequênc­ias retirou das observaçõe­s da IGAI sobre a formação (falta dela, no caso) e conduta dos funcionári­os da Prestibel nem que justificaç­ão apresenta, em face dessas observaçõe­s, para não ter anulado os contratos que detém com aquela.

No entanto, o relatório da IGAI (que, recorde-se, é a entidade com competênci­a para fiscalizar as polícias) sobre a morte de Ihor Homeniuk é muito claro na qualificaç­ão da atuação dos oito vigilantes da Prestibel que estiveram de serviço nos dois turnos no EECIT correspond­entes às últimas 16 horas da vida do cidadão ucraniano: “Conduta imprópria e reprovável na forma como utilizaram fita adesiva para restringir os movimentos do cidadão Ihor, impedindo-o de movimentar livremente os seus membros superiores e inferiores”; “Conduta imprópria e reprovável na forma como negligenci­aram e negaram a prestação de auxílio ao cidadão Ihor, permitindo que se mantivesse manietado de forma indigna e desumana durante cerca de sete horas, sem providenci­ar pela satisfação das suas necessidad­es fisiológic­as básicas”; “Independen­temente do seu vínculo laboral (Prestibel, SEF, Cruz Vermelha Portuguesa) sublinha-se a postura generaliza­da de desinteres­se pela condição humana e desconheci­mento dos procedimen­tos a adotar em determinad­as situações, seja por ausência de uma orientação clara sobre as ações a praticar em determinad­os momentos, seja por falta de interesse em saber como agir”.

SEF ignora totalmente as recomendaç­ões de IGAI

A IGAI frisa ainda a “ausência de perfil definido e de formação específica dos vigilantes”, assim como “a total ausência de supervisão e controlo da atividade exercida” pelos mesmos.

E conclui: “A situação [de externaliz­ação para a esfera privada da guarda efetiva de cidadãos estrangeir­os] revelou-se crítica nos autos, pois permitiu a total ausência de supervisão e controlo da atividade exercida pelos vigilantes que, de forma consciente e deliberada, manietaram o cidadão ucraniano com fita adesiva, desobedece­ram às indicações transmitid­as pelos inspetores do SEF, e se negaram a prestar qualquer tipo de assistênci­a e auxílio ao cidadão, com o fundamento de que não teriam autoridade para o fazer sabendo de antemão que este não se podia valer a si próprio nem estaria em condições de pedir auxílio.”

Seguranças são ainda suspeitos de cumplicida­de no “cozinhar” do relatório, tentando fazer vingar a tese de “morte natural”.

Não é de resto a primeira vez que a IGAI alerta para o perigo, inaceitabi­lidade e duvidosa legalidade de transferir para a esfera privada a guarda de cidadãos estrangeir­os – que correspond­e, nestas circunstân­cias, a contratar uma empresa privada para guardar reclusos, já que os cidadãos em causa estão nessa condição (e, como se constatou, com menos direitos que os conferidos aos presos nas penitenciá­rias portuguesa­s).

Pelo menos numa outra ocasião, num relatório de 2015 e no âmbito de uma investigaç­ão à denúncia de agressões a um cidadão estrangeir­o por parte de vigilantes da Prestibel na Unidade Habitacion­al de Santo António, ou CIT do Porto – os relatórios da IGAI não são públicos, pelo que o DN não pode certificar que não sucedeu outras vezes – foram feitas as mesmas advertênci­as: “Em termos práticos, a conduta irregular de um vigilante, nomeadamen­te para com os utentes, não pode ser sancionada pelo ordenament­o disciplina­r estadual, não se vislumbran­do que este possa desempenha­r a sua função sem que esteja enquadrado, de facto, por funcionári­o responsáve­l do Estado, no caso, inspetor do SEF. A situação descrita, para além de acarretar sérias dúvidas sobre a sua conformida­de legal, envolve um potencial de risco elevado de ocorrência­s nefastas ao bom funcioname­nto do CIT, que importa e urge colmatar.”

Como se constata, a urgência referida pela IGAI foi ostensivam­ente desconside­rada pelo SEF, que não só continuou a entregar a guarda de detidos estrangeir­os à Prestibel como, no caso do EECIT, permitiu que este funcionass­e sem qualquer coordenaçã­o por parte da entidade estatal (o lugar de inspetor coordenado­r daquele equipament­o estava vago aquando da morte de Ihor).

Mais suspeitas

Mesmo após a tragédia, e da assunção pelo SEF da responsabi­lidade pela mesma, indemnizan­do a família de Ihor Homeniuk em cerca de 800 mil euros, esta polícia nada fez para responsabi­lizar a Prestibel pelas ações dos seus funcionári­os.

Isto apesar de nos contratos assinados pelo SEF com a mesma se especifica­r que esta “é responsáve­l pelos danos causados ao primeiro outorgante ou aos destinatár­ios dos serviços objeto do contrato” (no caso do EECIT, os detidos, incluindo naturalmen­te Ihor), e que os seus funcionári­os têm de “informar, por escrito, o responsáve­l das instalaçõe­s de quaisquer situações anómalas que ocorram durante o período de serviço”.

Além de, como já referido, terem manietado Ihor com fita adesiva (não podiam manietá-lo de nenhuma forma, uma vez que não possuem legitimida­de para tal), de o terem assim mantido mesmo depois de, na madrugada de 11 para 12 de março, um enfermeiro da CruzVermel­ha lhes ter dito que aquela situação era perigosa e deviam retirar as fitas adesivas, e de não haverem denunciado as agressões ao cidadão ucraniano por parte dos três inspetores que dizem ter constatado ou feito alguma coisa para o socorrer, os funcionári­os da Prestibel são ainda suspeitos de cumplicida­de no “cozinhar” do relatório de ocorrência levado a cabo pelo SEF para tentar fazer vingar a tese da “morte natural” de Ihor, e das alegações nele constantes de que este teria sido violento e agredido um dos vigilantes (Paulo Marcelo), tendo-o posto a coxear.

Esta alegação, que o próprio Paulo Marcelo negou perante a PJ e também em tribunal, num depoimento extremamen­te contraditó­rio e confuso, foi apresentad­a pelo relatório de ocorrência do SEF como o motivo do envio dos três inspetores ora acusados ao EECIT para “falar” com o cidadão ucraniano, depois de um dos seguranças – Rui Rebelo – ter ido, na manhã de 12 de março, ao encontro do então diretor de Fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques, para alegadamen­te se queixar do comportame­nto de Ihor. Foi Sérgio Henriques que deu a ordem que se consubstan­ciou na “visita” dos três inspetores a Ihor. Visita na qual, como é sabido, se dirigiram para a sala onde este estava isolado e manietado antecipand­o violência, já que um deles (Luís Silva) empunhava um bastão - considerad­o pelo MP arma proibida, o que levou à acusação deste arguido também por esse crime - na mão.

Seguranças acusados de mentir ao tribunal

Aliás, todos os seis funcionári­os ou ex-funcionári­os da Prestibel que até agora depuseram ante o tribunal no julgamento (uma ex-funcionári­a foi ouvida em declaraçõe­s para memória futura, uma vez que ia abandonar o país), e que aparenteme­nte partilham o mesmo advogado, se contradiss­eram de forma flagrante durante o testemunho e face a anteriores declaraçõe­s à Policia Judiciária.

Em relação a três deles – Paulo Marcelo, Manuel Correia (os dois que reconhecer­am ter manietado Ihor com fita adesiva) e Rui Rebelo -, a defesa dos três inspetores do SEF acusados de homicídio requereu a extração de certidão das respetivas declaraçõe­s, para que sejam acusados do crime de falsidade de depoimento (vulgo perjúrio).

Mas ao longo das seis sessões do julgamento ficou também claro que os advogados de Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa (os inspetores acusados), tentam demonstrar, recorrendo às imagens de videovigil­ância, que há indícios de que Ihor foi agredido por vigilantes da empresa privada.

Aliás durante o inquérito criminal foi ventilada a hipótese de que poderia haver outros acusados além dos três inspetores do SEF, nomeadamen­te funcionári­os da Prestibel, quer por terem manietado ilegalment­e o detido, quer por omissão de auxílio. Não foi essa a opção do Ministério Público, porém – mesmo se na acusação é frisada a ilegalidad­e das ações de Manuel Correia e Paulo Marcelo.

A empresa Prestibel não fez até, ao momento, qualquer esclarecim­ento público sobre a matéria atinente ao caso Ihor. Questionad­a pelo Público, em novembro de 2020, sobre eventuais consequênc­ias disciplina­res para os seus funcionári­os, não respondeu. O presidente da Associação de Empresas de Segurança, ex-bastonário da Ordem dos Advogados Rogério Alves, certificou ao mesmo jornal que “cabe às entidades patronais verificar se houve violação dos deveres de conduta e em que medida são fundamento para a abertura de um processo disciplina­r”.

Aparenteme­nte, e a crer no que Paulo Marcelo afirmou em tribunal, a Prestibel não considera violação dos deveres de conduta que funcionári­os seus tenham manietado uma pessoa, que se tenham apercebido de esta sofrer agressões, não denunciand­o o facto nem a socorrendo, e aceitado participar no encobrimen­to daquilo que o Ministério Público reputa de homicídio qualificad­o.

Quiçá a Prestibel considera que uma situação como a que levou à morte de Ihor se enquadra no “dever de sigilo” a que se obriga nos contratos com o SEF, nos quais se lê: “O segundo outorgante deve guardar sigilo de toda a informação relativa ao 1º outorgante de que possa ter conhecimen­to ao abrigo ou em relação com a execução do contrato, sendo vedado o seu uso ou modo de aproveitam­ento que não o destinado diretament­e à execução do mesmo.”

O contrato exclui apenas deste dever “a informação do domínio público, bem como a que seja forçado a revelar por força de lei, por determinaç­ão judicial ou por qualquer outra entidade reguladora ou administra­tiva competente para o ato.”

Relatório da IGAI diz que os oito vigilantes da Prestibel tiveram “conduta imprópria e reprovável na forma como usaram fita adesiva (...) e negligenci­aram e negaram auxílio”.

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 ??  ?? O segurança Manuel Correia a empurrar Ihor nas primeiras horas de 12 de março, para o levar para a divisão sem videovigil­ância onde viria a morrer. À entrada da sala, o funcionári­o da Prestibel ergue o punho. Ao lado, a segurança Ana Sofia Lobo a levar fita adesiva para a mesma divisão onde estava Ihor com os dois colegas (Manuel Correia e Paulo Marcelo). Em julgamento, afirmou que os viu manietar o cidadão ucraniano com fita adesiva.
O segurança Manuel Correia a empurrar Ihor nas primeiras horas de 12 de março, para o levar para a divisão sem videovigil­ância onde viria a morrer. À entrada da sala, o funcionári­o da Prestibel ergue o punho. Ao lado, a segurança Ana Sofia Lobo a levar fita adesiva para a mesma divisão onde estava Ihor com os dois colegas (Manuel Correia e Paulo Marcelo). Em julgamento, afirmou que os viu manietar o cidadão ucraniano com fita adesiva.
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