Da literacia em todos os domínios do saber
Alexandre Quintanilha concluiu uma brilhante intervenção parlamentar, durante a discussão do estado de emergência (a 25/02), sentenciando: “Promover o conhecimento e a literacia em todos os domínios do saber será sempre a forma mais eficaz de lutar contra a insegurança, o medo e a mentira.” Não se pode estar mais de acordo com a totalidade da intervenção, que tanto enobreceu a sessão, nem deixar de perfilhar os princípios expressos nesta frase lapidar. A expressão “literacia em todos os domínios do saber” pode, porém, suscitar alguma estranheza, visto que, pela forma da palavra “literacia”, associamo-la geralmente apenas a leitura, literatura, língua escrita. De resto, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001) terá sido o primeiro dicionário português a registar “literacia”, atribuindo-lhe dois significados (“capacidade de ler e escrever” e “condição ou estado de pessoa instruída”).
O termo “literacia” tornou-se conhecido do grande público aquando da divulgação, em 2001, dos resultados obtidos por Portugal no Programme for International Students Assessment – PISA 2000, da OCDE, que visou avaliar a literacia dos alunos de 15 anos, de modo a aferir a eficiência dos sistemas educativos. Os resultados então obtidos deixaram a nu as insuficiências do sistema de ensino português, fruto do proverbial menosprezo pela educação que caracterizou a história portuguesa durante séculos, até à instauração da democracia. Os media da época deram voz à surpresa, indignação e às críticas, nem sempre construtivas, de uma classe política que parecia desconhecer a realidade do seu país.
E, no entanto, já em 1996, fora publicado o relatório final do projeto coordenado por Ana Benavente (disponível online), Literacia em Portugal. Resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica, que visou a avaliação de competências de leitura, escrita e cálculo em informantes de 15 a 64 anos de idade e que concluiu que 79,4% dos inquiridos possuíam níveis muito baixos de literacia (0 a 2, sendo que apenas 7,9% dos inquiridos se situaram no nível 4, o mais alto).
Os estudos sobre a literacia da população resultaram da constatação, em países desenvolvidos (EUA à cabeça), sobretudo a partir dos anos 1980, de que muitos adultos, apesar de terem vários anos de escolarização, não dominavam a escrita, a leitura e o cálculo e apresentavam sérias dificuldades em utilizar informação escrita. A privação desta capacidade leva os indivíduos a verem diminuídas as suas capacidades de participação na sociedade (e.g. exercício da cidadania, vida profissional, acesso à cultura), mas os países afetados veem incrementados os riscos de subalternização política, económica e cultural, a nível global.
Em 1996, literacia foi definida como capacidade de processamento de informação escrita, na vida quotidiana (social, profissional, pessoal), através de leitura, escrita e cálculo. Hoje, a abrangência do conceito é mais lata e engloba “compreender, usar, refletir sobre e envolver-se com textos escritos, de modo a prosseguir objetivos, desenvolver o conhecimento e o potencial e permitir ao indivíduo participar na sociedade” (PISA, 2009). Faz sentido, portanto, o uso de “literacia em todos os domínios do saber”, bem como as especificações literacia de leitura, matemática, científica, e também digital, financeira, em saúde, política.
Valerá a pena voltar ao tema, pela sua inegável importância. Fica prometido.