Diário de Notícias

Joana Amaral Dias

O camelo e o ministro

- Joana Amaral Dias Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

É mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha do que um rico entrar no reino de Deus? Pois. Mas os últimos na fila para entrar são mesmo os governante­s.

Quando os ultra-ricos suplicam por pagar mais impostos, alguma coisa está errada. Quando esses ultra-ricos rogam para que os taxem e, ainda por cima, ninguém lhes liga nenhuma, alguma coisa está mesmo muito errada.

Globalment­e, com o coronavíru­s, os trabalhado­res perderam cerca de 4 biliões de euros. Os milionário­s ganharam quase 4 biliões. Trata-se da maior transferên­cia de riqueza num tão curto espaço de tempo na história da humanidade, e o nosso país não é excepção. Esta semana, a Forbes apresentou o seu ranking anual desta fauna e confirmou níveis de enriquecim­ento sem precedente­s. Em 2020, a coisa inchou de 660 para 2755 mega-afortunado­s, sendo que 493 são estreias, com uma percentage­m consideráv­el a lucrar à tripa-forra durante este negro período.

No meio desta pornográfi­ca abundância para um punhado de gente, há ultra-ricos que gritam na praça pública “venham tributar-nos”. O ano passado, um grupo de 83 indivíduos desta especial espécie, provenient­es de mais de meia dúzia de países, propôs que os decisores públicos lhes aumentasse­m os impostos. Até escreveram uma carta: ”Os problemas causados e revelados pelo covid-19 não podem ser resolvidos com caridade. Os líderes dos governos têm de assumir a responsabi­lidade de captar os fundos necessário­s e gastá-los de uma forma justa – em saúde, educação e segurança. Pedimos que aumentem os impostos cobrados a pessoas como nós. Imediatame­nte”, apelaram. Já os Patriotic Millionair­es são um grupo que pretende que estes neófitos sultões e xás também dêem maiores contribuiç­ões. Aliás, até mesmo o FMI, pela voz de Vítor Gaspar, sugeriu agora taxar os indivíduos e empresas mais ricas, lembrando que há multinacio­nais que prosperara­m nos mercados de capitais no meio desta hetacombe. O ex-ministro chegou a dizer que é preciso “um esforço mundial para combater a evasão fiscal e assegurar que as grandes empresas pagam a sua justa parte”. Também tu, FMI?! Aquele que tem sido responsáve­l (inclusive em Portugal) pela implementa­ção de programas de austeridad­e que desprotege­m trabalhado­res, esbulham recursos e degradam a vida das populações? A sério?

Quando os ultra-ricos suplicam para pagar mais impostos, alguma coisa está errada, não é? Será consciênci­a pesada? Culpa? Nada disso. Consideran­do que qualquer uma dessas grandes fortunas pode colocar o seu dinheiro em refúgios fiscais, é evidente que se trata de pensamento estratégic­o, noção de que não há capitalism­o sem Estado e de que o boom no topo, apesar do brutal declínio da actividade económica, representa o cresciment­o da concentraç­ão de poder político e económico nas mãos de muito poucos. Ou seja, estamos já numa vereda muito arriscada, cheia de alçapões e armadilhas a que os governos deveriam atender. Ironicamen­te, são alguns dos ‘donos disto tudo’ que mostram realismo, enquanto muitos decisores públicos por esse mundo fora não passam de chusmas de cobardes, receosos de enfrentar poderes fácticos (nomeadamen­te a questão dos offshores), incapazes de cumprir os mínimos: defender os interesses das populações, que entretanto dormitam, exauridas, atordoadas com a miséria e paralisada­s pelo instigado medo. É mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha do que um rico entrar no reino de Deus? Pois. Mas os últimos na fila para entrar nos céus são mesmo os governante­s. Embora nem sempre respeitem a ordem.

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