José Mendes
Nova primavera, velho outono
Comentam, teorizam, acusam, como sanguessugas, na certeza escondida de que, no final do dia, os bons tratarão também deles. São os que nasceram no seu outono e por lá ficaram desde então.
Opaís está a braços com a saída de um duro confinamento, procurando o justo equilíbrio entre a retoma da atividade económica e a observação das regras sanitárias. Nas ruas, as pessoas exteriorizam sentimentos mistos, alternando, por vezes na mesma frase, esperança e desalento, coragem e medo. Sinais da incerteza. A alegria apressada com que vejo mulheres e homens a aprontar esplanadas, sorrindo nervosamente para os transeuntes na expectativa de os ver clientes, remete-me para uma cena de filme da Segunda Guerra, em que as pessoas se atropelavam no lapso que decorria entre dois bombardeamentos sucessivos, num frenesim de quem tudo queria viver e fazer naquela brecha de paz. As crianças e os jovens voltaram a popular a urbe, trouxeram o colorido das suas roupas e mochilas e os gritinhos de adolescentes que rivalizam com o chilrear primaveril da passarada. A meu ver, os idosos parecem ser o motor da retoma. Vejo-os mais confiantes, à conversa nas esplanadas, aos pares, ou na frutaria. Nas inevitáveis rasantes pelos passeios, apuro os ouvidos e ouço-os falar das vacinas. Que agora se sentem mais seguros e que em breve poderão retomar as tertúlias dos bancos de jardim, fazendo-se companhia e desejando muito voltar a ter os netos ao alcance de um olhar.
Passo os olhos pelos jornais e, por deformação de personalidade, detenho-me nos títulos que sugerem coisas boas, notícias positivas, problemas resolvidos e, sobretudo, pessoas que estão do lado da solução. Confesso que tenho um grande apreço por Graça Freitas, a nossa diretora-geral da Saúde. Gosto da sua tranquilidade e ponderação, atributos sem substituto para a função e a tarefa que lhe caíram em mãos. Inspira-me confiança, não é mulher de precipitações. Por detrás daquela face e voz cândidas está uma profissional resiliente, que não recua, que decide com base na melhor ciência disponível, mesmo que aqui e ali possa não ter comunicado da melhor forma. Afinal, quem estava preparado para um desafio e uma responsabilidade desta sorte? Gosto também de Gouveia e Melo, o nosso vice-almirante que agarrou a logística do aprovisionamento, distribuição e administração das vacinas anticovid com a competência de quem já habitou em teatro de guerra. Não entra nos jogos de palavras, que quase sempre são rasteiras mal lançadas pelos que não fazem. Conhece a sua missão e a linha firme, nem sempre reta, que conduzirá, a nós e a ele, à imunidade. Tendo servido em Tancos há mais ou menos três décadas, não esqueci a admiração pelo compromisso que a instituição militar mantém com aqueles a quem serve, bem patente num padrão de comunicação enxuto e objetivo. O vice-almirante não abre brechas, tem uma missão e vai cumpri-la, fazendo muito e dizendo pouco.
Por esta altura, o leitor deve estar já a forjar na sua mente a pergunta sacramental: “Qual é o ponto desta crónica?” Eu vou responder. A inquietação que me impele a escrever esta semana é a dicotomia entre dois mundos. O real, que procurei retratar, das pessoas que enfeitam as esplanadas, sorriem nas ruas, ainda que timidamente, saltitam para as escolas, tratam da vacinação e ajudam a criar as condições para uma primavera anticovid. E o outro, que paira e não me seduz, dos que habitam o mundo das construções negativas, das críticas, da hiperbolização dos problemas, e que nunca, sim, nunca, estão do lado da solução. Comentam, teorizam, acusam, como sanguessugas, na certeza escondida de que, no final do dia, os bons tratarão também deles. São os que nasceram no seu outono e por lá ficaram desde então.