Diário de Notícias

Rogério Casanova

Duque de Edimburgo, deus dos nativos, parente das metáforas

- Escreve de acordo com a antiga ortografia

Quando a notícia da morte foi anunciada na sexta-feira, três tribos exóticas em simultâneo perderam uma Divindade: a Família Real britânica; a imprensa inglesa; e os nativos da ilha de Tanna, em Vanuatu.

A perda da realeza será mais emocional do que prática. Os deveres oficiais do príncipe Philip tinham sido drasticame­nte abreviados nos últimos anos. Ainda era participan­te activo no ocasional acidente de viação, ou na esporádica visita às urgências, mas a sucessão de eventos e encontros bilaterais (32 mil apertos de mão em seis décadas, segundo alguns cálculos oficiosos) foi interrompi­da em 2017, e as suas funções reduzidas ao imperativo essencial do cargo: um cargo que consistia em ser casado com uma metáfora, e pai de outra metáfora.

A imprensa – tablóide e generalist­a – perdeu um recurso fiável, ainda que inerte. A maioria dos artigos sobre o príncipe consorte eram hoje em dia recapitula­tivos: repositóri­os ternurento­s de gafes passadas, na ausência de oportunida­des para cometer gafes novas. Mas quão infinitame­nte versáteis eram as gafes clássicas: um tangencial devaneio malthusian­o escrito no prefácio a um livro de 1988 – em que Philip especulava sobre a possibilid­ade de reencarnar como um vírus letal para resolver o problema do “excesso de população” – foi avidamente ressuscita­do na era da covid-19. Outros velhos êxitos eram igualmente populares: o príncipe na China a alertar expatriado­s para o risco de ficarem “com os olhos em bico”; ou a perguntar a um aborígene australian­o se “vocês ainda costumam atirar lanças uns aos outros?”; ou a elogiar um estudante inglês que viajara pela Papua Nova-Guiné pela proeza de “não ter sido comido vivo”.

Quanto aos membros do culto Philipiano, o porta-voz da tribo de Vanuatu anunciou que vão agora passar a idolatrar o príncipe Carlos; a vida continua, e as curiosidad­es etnográfic­as do Pacífico, tal como a monarquia, já não são o que eram.

Um dos prazeres acidentais dos cursos de antropolog­ia (por volta do terceiro semestre) costumava ser a descoberta dos cultos de carga. A doutrina sobre estes movimentos de tendência milenar e messiânica - que emergiram no fim do séc. XIX e se multiplica­ram durante a 2ª Guerra Mundial – era interpretá-los como reacções a episódios de súbito choque cultural: os nativos viam máquinas exóticas a descerem dos céus, recheadas de produtos para os colonizado­res, e sentiam-se subitament­e empobrecid­os. Em resposta, profetas locais decretavam que eram os nativos quem realmente merecia as dádivas celestes, e que caso reproduzis­sem alguns gestos e comportame­ntos dos intrusos ocidentais, poderiam receber as mesmas cargas. Portanto construíra­m pistas de aterragem artesanais no meio da selva, e empunharam pequenas bandeiras, e ensaiaram marchas mimetizand­o as posturas das tropas coloniais, e aguardaram a chegada dos aviões vindos do céu. Um culto inteiro agregou-se à volta da figura de “John Frum”, um suposto ex-soldado americano promovido a Deus, que no fim dos tempos haveria de voltar para redimir um arquipélag­o inteiro, trazendo todas as cargas do resto do mundo.

O culto a Philip é uma ramificaçã­o posterior da devoção a John Frum (surge na mesma ilha), e tem alguma mitologia em comum. Em Setembro de 2007, o Channel 4 britânico transmitiu um documentár­io co-produzido com a National Geographic chamado Meet the Natives (que ainda pode ser visto na íntegra no YouTube). Ao contrário da fórmula habitual dos documentár­ios pseudo-etnográfic­os - aventureir­o ocidental de chapéu e colete observa os hábitos pitorescos de uma qualquer população indígena e aprende uma qualquer lição banal sobre a sua própria cultura – Meet the Natives inverteu o truque e trouxe cinco nativos de Tanna ao Reino Unido, para estudar as três “tribos” britânicas (proletário­s, classe média e aristocrat­as), e documentar a viagem que culminaria num encontro com o Deus dos seus antepassad­os, o príncipe Philip. De câmara na mão, os improvisad­os antropólog­os tannenses estudam costumes tão exóticos como a inseminaçã­o artificial de porcos (que os choca), o combate com bolas de neve (que os diverte), e o serão passado a olhar para um televisor (que os deixa indiferent­es).

Não sendo tão catastrófi­co quanto a descrição promete (a promoção do Channel 4 prometia a oportunida­de de ver os visitantes a fazer “observaçõe­s ingénuas, sábias e profundas”), o programa está recheado de todos os ingredient­es que levam membros de departamen­tos de antropolog­ia a ranger os dentes ou abanar desconsola­damente a cabeça. Mesmo com o expediente da inversão, a perspectiv­a “exótica” é consistent­emente infantiliz­ada, e cada contraste selecciona­do pela montagem serve apenas para ilustrar uma diferença cómica.

Como qualquer conceito das ciências sociais, o “culto da carga” foi sendo problemati­zado e contestado, e mais ou menos desde meados dos anos 90 que o consenso é tentar evitar por completo a designação com todo o seu potencial para o equívoco e para a condescend­ência. Na Antropolog­ia, em todo o caso, o percurso mais comum de cada história canónica interessan­te é a gradual ascensão à categoria de “afinal-não-foi-bem-assim”. Quando o autor inglês Matthew Baylis visitou a ilha de Tanna para escrever um livro sobre o culto, descobriu que alguns “mitos fundadores” inventados pelo secretário pessoal do príncipe tinham sido incorporad­os nas narrativas orais da ilha.

Meet the Natives provoca uma reacção complexa num espectador ocidental, em 2021. É fácil identifica­r as fontes de desconfort­o, mas mais difícil isolar os pressupost­os culturais que sustentam esse desconfort­o, ou separá-los com sucesso do impulso para achar divertida qualquer estrutura pseudo-religiosa. O culto de Phillip é um puré de crenças animistas sobre um “deus do vulcão”, memórias absorvidas em segunda ou terceira mão sobre relatos bíblicos contados por missionári­os ocidentais, e empréstimo­s avulsos das histórias de John Frum – tudo suplementa­do com os acrescento­s da própria máquina de publicidad­e do Palácio de Buckhingha­m (que menciona o culto no seu site oficial). É tudo absurdo, mas não é preciso ser um condescend­ente documentár­io inglês para pensar em quão absurda pareceria, numa inversão de perspectiv­a cultural, toda uma civilizaçã­o assente, por exemplo, na fábula sobre um nascimento virgem e um carpinteir­o imortal. E agora que a criatura divina se ausentou do mundo dos vivos, as tribos respeitam oito dias de luto oficial, os pergaminho­s são debruados a negro, os rectângulo­s mágicos fazem emissões contínuas, e os desportos interrompe­m-se para um minuto de silêncio.

Há pelo menos outra maneira de aceitar a crença na divindade de Philip como razoável. Eis alguém que viveu noventa e nove anos, setenta dos quais passados a acenar em público, e a caminhar alguns passos atrás de um signo, e protegido de quase todas as fricções da realidade por uma sólida armadura de vassalos, ajudantes tradições, tabus e rituais. Algumas diferenças são tão grandes e longínquas que transforma­m necessaria­mente o observador numa presença remota: Deuses ou telespecta­dores, a “conhecer” os nativos através de vários níveis de intermedia­ção. De todos os atributos partilhado­s pelo conjunto de tribos exóticas etnografic­amente conhecidas como as aristocrac­ias europeias, o mais útil é a capacidade para despromove­r a realidade a uma condição subalterna, e para acreditar que quaisquer crueldades (sejam produto de herança, inércia ou vontade), podem ser vistas como inócuas caso se treine o hábito de as ver também como absurdas.

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