Pirataria de conteúdos de imprensa é atentado à democracia
MEDIA A distribuição ilegal de conteúdos de imprensa, por via digital, não é nova mas é cada vez mais danosa para as empresas de Comunicação Social. Perante um quadro legal insuficiente, vários as vozes se levantam para sensibilizar os poderes políticos c
Começa por ser um gesto distraído, dois toques no smartphone e eis um, dois, e depois dezenas de artigos de jornal ou revista, em PDF, ao dispor do cidadão instalado no sofá. Inadvertidamente, a distração de hoje transforma-se no hábito de amanhã, sem que o título seja alguma vez ressarcido desse consumo abusivo. Se multiplicarmos este cidadão por dezenas de milhares com práticas semelhantes, então o que está em causa, como nota Carlos Eugénio, diretor da Visapress, entidade que gere os direitos autorais de centenas de títulos e profissionais em Portugal, é “o empobrecimento das empresas de comunicação social e consequentemente a sua menor capacidade para contratar jornalistas qualificados e experientes.” Quem sofre? “A própria democracia”, afirma.
Cristina Rodrigues, deputada não inscrita (eleita por Setúbal, nas listas do PAN, mas desvinculada do partido desde junho 2020), prepara-se para apresentar uma recomendação ao Governo, depois de ter sido alertada para a gravidade do problemas na sequência de conversas tidas com entidades como o Sindicato dos Jornalistas, associações de imprensa ou a Visapress. “Quando falamos da partilha não consentida dos PDF, estamos a falar de danos na ordem de 85 milhões euros anuais para as empresas de Comunicação Social. As implicações disto para a independência do jornalismo são assustadoras.”
Em causa estão duas situações distintas, mas igualmente danosas: por um lado, temos a pirataria digital, que, de forma ilícita, distribui conteúdos a milhares de pessoas, usando, por exemplo, as apps de conversação. O objetivo é claramente comercial e visa assegurar a fidelização de clientes às empresas e sites que promovem este tipo de produtos. “Nunca como agora se distribuiu de forma tão selvagem os conteúdos de jornais e revistas”, nota Carlos Eugénio. Isto porque o tipo de tecnologia hoje generalizado o permite. “Com dois toques no écran de um smartphone tem-se acesso a um jornal inteiro. Ou a música, ou a livros e a filmes. Se esta partilha for feita num grupo restrito de amigos, existe alguma perda para as empresas e para os autores, mas conseguimos lidar com isso. Mas quando começamos a ter grupos de 10 mil ou 20 mil pessoas, as coisas passam para a esfera pública e temos de atuar.”
Em 2015 foi assinado um memorando de entendimento entre as entidades de gestão coletivas, representadas pelo MAPINET – Movimento Cívico Anti-Pirataria , pelo governo português, representado pela IGAC – Inspecção Geral das Atividades Culturais e pelos provedores da Internet, no sentido de se proceder ao bloqueio de websites que disponibilizam conteúdos protegidos por direitos de autor.” No entanto, as evoluções tecnológicas dos últimos cinco anos tornaram esta medida muito pouco eficaz, na prática. Interpeladas, estas entidades, afirma Carlos Eugénio, nem sequer respondem. Foi, pois, interposta uma providência cautelar, cujo desfecho ainda está em aberto.”
A outra situação é protagonizada pelos serviços de clipping, que vendem a empresas particulares e públicas, bem como a organismos do Estado (desde ministérios a autarquias), recortes de imprensa selecionados em função do perfil do cliente. “Durante muito tempo estas empresas negaram-se a fazer qualquer pagamento às empresas de comunicação social, embora vendessem os conteúdos produzidos por estas. Teve de haver uma ação judicial.” Com efeito em setembro de 2019, o Tribunal da Propriedade Intelectual condenou três empresas de clipping a ressarcir pela perdas os órgãos de comunicação social lesados, com efeitos retroativos até 2010, ao mesmo tempo que estabelecia “a subscrição de uma licença que determine os termos e as condições para a reprodução, distribuição e arquivo de conteúdos extraídos de jornais, revistas e outras publicações periódicas de imprensa escrita.”
Foi um passo, mas está longe de resolver o problema. Antes de mais, porque existem mais empresas a fazer clipping para além das visadas neste processo, e depois porque importa mudar mentalidades e insistir na pedagogia de cidadãos e instituições, incluindo as do Estado. Para Carlos Eugénio importa “demonstrar a órgãos de soberania, como a Assembleia da República, que têm um ganho com esse clipping, que os seus comportamentos têm um impacto real. Se o número de jornais e revistas consumidos pelos deputados, por exemplo, diminui em virtude desse clipping, importa que a AR perceba que não pode ser parte do problema.”
Como se combate a pirataria?
O que fazer, então, para inverter a situação? Carlos Eugénio diz que “o quadro legal existe, mas não é eficaz. Imagine que sou dono de um jornal, vou à polícia dizer que o meu título está a ser roubado todos os dias, em determinado sítio e daqui a 5 anos vou ter uma resposta de caso julgado. Isto é incompreensível. O que tem de haver são medidas expeditas para tentar preservar o direito de autor”. Para a deputada Cristina Rodrigues, a aposta na Pedagogia cívica é essencial: “Se calhar há a necessidade de clarificar o que está na lei mas o que importa é demonstrar às pessoas que esta conduta não é aceitável. Vamos, por isso, fazer uma recomendação ao Governo para que se inicie uma sensibilização aos leitores no sentido de promover a leitura legal e responsável dos conteúdos da imprensa. Tínhamos pensado que a publicidade institucional comprada pelo Estado, e que ainda não foi usada, poderia ser destinada a esse objetivo.” À apresentação da recomendação seguir-se-á a discussão na comissão parlamentar de Cultura e Comunicação, de que Cristina Rodrigues faz parte.
Carlos Eugénio também aposta na pedagogia: “As pessoas, as empresas e mesmo os organismos do Estado têm de compreender de uma vez por todas que as empresas de Comunicação Social, sobretudo as regionais, não são extremamente ricas. Quem distribui PDF ilegais não é o Robin dos Bosques, não está a roubar aos ricos para dar aos pobres.” Neste momento, a Visapress está a contactar todas as instituições que recorrem a serviços de clipping no sentido de se licenciarem com ela e Carlos Eugénio está certo de que obterá muitas respostas afirmativas. E conclui: “Pugnaremos sempre pelos direitos dos nossos representados. Combateremos a pirataria de todas as formas, usando todos os instrumentos ao nosso alcance para que sejam removidos todos os conteúdos disponibilizados de forma ilegal.”
“Quem distribui PDF ilegais não é o Robin dos Bosques, não está a roubar aos ricos para dar aos pobres”, garante o diretor da Visapress, Carlos Eugénio.