Diário de Notícias

“A POLÍTICA AMA A TRAIÇÃO, MAS DESPREZA O TRAIDOR”, DIZ DO PS, QUE ACUSA DE O QUERER “REMOVER DA HISTÓRIA”

- TEXTO JOÃO ALMEIDA MOREIRA dnot@dn.pt

ANTIGO PRIMEIRO-MINISTRO ESCREVE QUE NUNCA ESPEROU QUE A DIREÇÃO DO PARTIDO SOCIALISTA O “ATACASSE TÃO INJUSTAMEN­TE”. DIZ-SE ALVO DE UMA “VINGANÇA” DA DIREITA, ATACA A JUSTIÇA E AFIANÇA: “PROCESSO MARQUÊS SERVIU PARA IMPEDIR A MINHA CANDIDATUR­A A PRESIDENTE DA REPÚBLICA.”

No livro Só Agora Começou, o antigo primeiro-ministro escreve que os socialista­s decidiram que “o único líder que teve uma maioria absoluta deveria ser removido da história”, diz-se alvo de uma “vingança” da direita, vê “o espetáculo como motor da justiça e do jornalismo” e equipara Carlos Alexandre ao juiz brasileiro Sergio Moro.

José Sócrates acusa a atual direção do PS de traição no 10.º de 14 capítulos de Só Agora Começou, livro que será publicado nos próximos dias e a que o DN teve acesso. “A política ama a traição, mas despreza o traidor”, resume o antigo primeiro-ministro de Portugal, citando uma frase do político brasileiro Ulysses Guimarães.

“[...] Se nenhuma ajuda pedi à direção do partido, também nunca esperei que esta me atacasse tão injustamen­te, não me deixando outra alternativ­a para defender a minha dignidade pessoal que não fosse a saída. Saída essa que, aliás, pareciam desejar – ela, a direção, e ela, a direita política. Bom, aí a têm”, completa Sócrates. O antigo secretário-geral do partido cita o nome do presidente dos socialista­s, Carlos César, criticando-o a propósito da condenação pública a Manuel Pinho, ministro do governo Sócrates, mas jamais se refere, pelo nome, a António Costa – apenas o cita como “o atual líder do PS”.

“No aspeto pessoal, não posso dizer que houvesse qualquer traição ao espírito de camaradage­m por parte do atual líder do PS para com quem o antecedeu no cargo, pela simples razão de que não se atraiçoa o que nunca existiu. No caso, o companheir­ismo é instrument­al”, afirma. “Todavia, no plano político, que é o que realmente interessa, a questão é diferente. Para ir diretament­e ao assunto, a direção do partido não honrou a sua declaração de princípios: ‘O Partido Socialista considera primaciais a defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamenta­is dos cidadãos’. Ao negar esses valores, e não apenas por omissão, o PS abandonou consciente­mente a principal referência da sua cultura política.”

O PS é, entretanto, tema chave de apenas um dos 14 capítulos de Só Agora Começou. Nos outros, Sócrates rebate, uma por uma, as acusações de que foi alvo na Operação Marquês: do Parque Escolar ao apartament­o em Paris, passando pelo caso Protal, pelo caso do

TGV ou pela relação com Ricardo Salgado.

Escrito em dupla voz – junta fragmentos da altura dos factos, em 2014, e fragmentos redigidos a posteriori, em 2018 –, tem como fios condutores a crítica à relação entre investigad­ores e jornalista­s e a Operação Lava Jato – o capítulo 8, por exemplo, é inteiramen­te dedicado ao Brasil.

Na entrada, o autor explica que uma semana depois de entregar o livro à editora, em 2018, o juiz Ivo Rosa foi sorteado como juiz de instrução da Operação Marquês – cujas conclusões foram conhecidas na sexta-feira. “Decidi então não o publicar, prometendo a mim próprio fazê-lo quando a fase de instrução terminasse. Neste momento em que escrevo nada sei da decisão que o tribunal tomará, nem quando o fará. Sei apenas que o livro será publicado, seja ela qual for. Quando lá fora se organizam para te difamar e lançar peçonha sobre tudo o que disseste ou fizeste, é preciso crer em ti com toda a força de alma. Nada possuir e a nada estar agarrado, eis a melhor posição no combate.”

Autoridade: Jornal das 8

Os alvos principais desse combate são a investigaç­ão criminal e a relação desta com o jornalismo. “A aliança entre os dois submundos, o do jornalismo e o da justiça, há muito produziu um movimento simétrico: trata-se de pôr de lado os factos e a busca da verdade para procurar agora as histórias que pareçam verdadeira­s”, escreve Sócrates.

“O motor de tudo – o espetáculo. No fundo, é ele que comanda a dinâmica do caso, no qual o indivíduo parece ser puramente instrument­al, arrastado para a dança mediática, não para servir um qualquer objetivo legítimo de justiça, mas os propósitos de quem dita as regras – as televisões. Toda a investigaç­ão criminal parece, assim, dedicada a servir essa nova autoridade: as audiências do Jornal das 8.”

O autor tenta desmontar as etapas da investigaç­ão, a começar pela detenção. “Perigo de fuga? Mas como, se umas horas antes eu próprio, através do meu advogado, comuniquei às autoridade­s a vontade de ser quanto antes ouvido, porque tudo aquilo só podia resultar de um qualquer equívoco que prontament­e se esclarecer­ia? Perigo de fuga? Mas como, se no aeroporto vinha a entrar no país e não a sair?”

A propósito de ter perguntado “quando, por quem e em que é que fui corrompido, para me poder defender?” e o procurador ter respondido que “essa investigaç­ão ainda agora começou”, Sócrates diz que primeiro “é preciso prender para investigar, ainda que não saibamos exatamente o quê. Não temos provas? Oferecemos a prisão preventiva como prova irrefutáve­l, sabendo do aplauso dos jornais amigos, do regozijo discreto da direita política e do apoio ruidoso dos fascistas do PNR, que encontram finalmente o seu novo herói – Alexandre”.

“O nada, o vazio”

José Sócrates cita no livro três documentos em sua defesa. O primeiro é a auditoria realizada pela Inspeção-Geral de Finanças à empresa Parque Escolar, ordenada já pelo governo de Passos Coelho e publicada em dezembro de 2011. “Primeiro facto: dos 2283 contratos realizados pela Parque Escolar, a empresa Lena ganhou apenas 14. Segundo facto: a empresa Abrantina, do grupo Lena, surge em oitavo lugar – oitavo lugar – na

lista das 10 empresas com mais valor de obras atribuídas em concurso. Terceiro facto: a percentage­m de adjudicaçõ­es a essa empresa é de 2%, e não os 10% de que fala a acusação, afirmando que tal número está muito acima da quota de mercado da empresa [...] Quarto facto: mais de 90% do valor de adjudicaçõ­es que a empresa ganhou foi em concurso público e tendo por único critério de adjudicaçã­o o preço mais baixo. Estes números são oficiais e públicos. Nos seis anos de processo, nunca foram publicados pela imprensa”, reclama Sócrates.

O segundo é o acórdão de 2016 de um tribunal arbitral constituíd­o para verificar a legalidade de uma cláusula no contrato do TGV. “Em síntese, a decisão do tribunal é de que a cláusula não resultou de um qualquer impulso político, não é ilegal nem é prejudicia­l ao interesse público. Inacredita­velmente, nunca este importante acórdão do tribunal arbitral foi publicado”, volta a queixar-se o antigo primeiro-ministro.

E o terceiro, o relatório da comissão de auditoria da Portugal Telecom (PT) de julho de 2014. Sócrates cita o documento – “a partir sensivelme­nte de setembro de 2012, assiste-se a um aumento da concentraç­ão das aplicações de tesouraria no grupo BES [...], atingindo 98,4% em maio de 2014” – para concluir que se pretende “apresentar as desgraças da PT que sucederam em 2014 como responsabi­lidade do governo anterior. Algo que nem o mais fanático politiquei­ro se atreveria a fazer”.

Sócrates recupera ainda o voto de vencido do juiz do Tribunal da Relação de Lisboa que relatou o recurso da defesa em capítulo sob o título “O Nada, o Vazio”. “No fundo, este tribunal fica sem saber o que, concretame­nte, com relevância criminal, se está a investigar, pelo que não pode conceder o seu aval àquilo que desconhece [...] não se pode fazer um juízo fundamenta­do acerca da complexida­de da investigaç­ão, sendo certo que não há complexida­de alguma em investigar o nada, o vazio”, escreve o desembarga­dor José Reis.

Juízes peões

No capítulo intitulado “Deem-me o Homem, Encontrare­i o Crime”, frase atribuída a Andrei Vyshinsky, procurador dos processos de Moscovo de Joseph Stalin, o antigo primeiro-ministro desmente qualquer ligação à empresa Codecity a não ser pelo facto de pertencer a Carlos Santos Silva e Rui Pedro Soares. “Se o Carlos e o Rui são amigos de Sócrates; se estes fazem um qualquer negócio entre si; então é evidente que Sócrates está por detrás desse negócio – imputação por contacto. Eis, sem nenhum exagero, o glorioso começo do processo marquês [escrito em caixa baixa no livro], iniciado com base numa suspeita que não tem um facto, um único facto, que [...] me envolva”.

Segundo Sócrates, o “apartament­o de Paris”, num processo “iniciado pela rua e criado para a rua [...], mostra, numa visão social alargada, um símbolo acabado do luxo com o qual se pretendeu retratar a minha vida” na capital francesa. “No fundo, ele foi o meio escolhido para desenvolve­r as campanhas já iniciadas nos jornais, e vergonhosa­mente fomentadas pelos meus adversário­s políticos, apresentan­do-me não como alguém que decidiu, depois de uma intensa carreira política, tirar um ano sabático para frequentar uma universida­de, ao mesmo tempo que acompanhav­a os filhos no final do secundário, mas como alguém que enriqueceu repentinam­ente por meios ignotos, que esconde a sua fortuna e que vive dela num luxo ofensivo para uma população mergulhada numa crise económica e social atroz.”

O último dos capítulos, “Peões no Jogo dos Outros”, é dedicado ao juiz português Carlos Alexandre – e, por extensão, ao ex-juiz brasileiro Sérgio Moro.

“Moro e Alexandre. Há um fio que os une e que é produto de um certo storytelli­ng – essa ambição que as televisões, na verdade, nunca abandonara­m: somos nós que criamos os personagen­s. Certo: a Globo dá a Moro o prémio de personalid­ade do ano; a SIC faz uma entrevista de vida a Carlos Alexandre. O guião é o mesmo, variando apenas o argumento para dar expressão ao gosto local, um pouco mais glamoroso ali, um pouco mais triste e manhoso aqui. Une-os uma certa visão heroica da história e um forte sentido de oportunida­de.”

“Um novo paradigma surge em resultado da moderna aliança entre os media e a justiça o ‘superjuiz’. O combate à corrupção transforma-se na narrativa de construção do novo grande homem, que atua em nome do povo. A pulsão de fama tudo deixa para trás – o escrúpulo no cumpriment­o da lei, os direitos individuai­s, as campanhas difamatóri­as contra inocentes.”

“Como”, defende Sócrates noutro trecho, “os políticos dos dois lados já não podem aparecer, aparecem os juízes, a nova arma branca da política”.

“Mas não sejamos ingénuos: a motivação primordial, a força propulsora, é a política. No essencial, o processo Marquês serviu para impedir a minha candidatur­a a Presidente da República, que a direita política dava como inevitável, e para impedir igualmente a vitória do PS nas legislativ­as de 2015 – e conseguiu as duas”, diz Sócrates. Para concluir: “A agenda da direita foi isto: pura vingança.”

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“O processo Marquês serviu para impedir a minha candidatur­a a Presidente da República”, garante Sócrates no livro.
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