REPORTAGEM ESPECIAL O EFEITO DA PANDEMIA NO MERCADO DAS DROGAS
“Pensei: ‘Isto é uma boa droga para se estivermos sem os miúdos, para nos libertarmos’. Experimentei com o meu marido e repeti. Tomámos à hora do almoço e passámos a tarde a dançar.”
Que efeito teve a pandemia no mercado das “drogas”? Enquanto ocorre um estudo europeu , o DN ouviu consumidores e especialistas. Houve de tudo: quem se iniciasse nos psicadélicos e até em “drogas de festa” como o MDMA, quem intensificasse consumos, quem os diminuísse ou procurasse tratamento. E quem começasse a vender.
S “ou a consumidora mais betinha.” É assim que Maria, que não se chama Maria – nesta reportagem, todos os nomes de quem relata na primeira pessoa consumos de substâncias ilegais foram alterados – se apresenta. E sim, ela não é de todo o tipo de pessoa que tipicamente, no imaginário popular, se associa a consumo de drogas.
Com 39 anos, funcionária numa instituição do Estado, vive com o marido mais dois filhos pequenos e passou os confinamentos em teletrabalho. Consumidora mais ou menos habitual de canábis, foi durante a pandemia que se iniciou no MDMA (ecstasy) com o marido – duas vezes, quando os miúdos não estavam. “Nunca tinha consumido, experimentei e repeti. Tomámos à hora do almoço e passámos a tarde a dançar, em modo festa. Estou ansiosa por poder experimentar isto em grupo, em comunhão com pessoas.”
Acha que iria experimentar a metilenodioximetanfetamina, conhecida como “a droga do amor” e muito relacionada com a cultura do nighclubbing e da dança, de qualquer modo, mas “o facto de o fazer durante a pandemia permitiu um balão de oxigénio muito grande. É que ter dois miúdos pequenos com muito pouco apoio estes meses todos em casa... Pensei:‘Isto é uma boa droga para se estivermos sem miúdos, para nos libertarmos’”. A compra, em comprimidos, fez-se num “dealer [vendedor] conhecido de um amigo”. Uma exceção na via mais habitual das suas compras de substâncias, que é a net. “Uso canábis comprada online, em líquido, para o vaporizador.”
Foi também online que comprou LSD – dietilamida de ácido lisérgico, o alucinógeno a que se costuma dar o nome de “ácido” –, a um fornecedor recomendado por um amigo, mas ainda não usou. “Entrei na comunidade psicadélica, em que há desde gente das neurociências e psicologia até xamãnicos, e faço parte de um grupo que defende o uso de psicadélicos, o Safe Journey. Há um renascimento destas drogas, cujo consumo não está normalmente integrado nos inquéritos. Durante o confinamento também fiz uma sessão com cogumelos mágicos, assistida pelo meu marido.”
Com os cogumelos psicadélicos – que são “cultivados” por um amigo, em casa (“Há muita gente que faz isso, compra-se o pack todo online para o cultivo”) – não foi a primeira vez, porém: a primeira aconteceu com um psiquiatra, conta, a rir. “Sou mesmo betinha nisto. Conto as experiências à minha psicóloga, escrevo sobre elas... LSD ainda não fiz porque não sei se quero experimentar a primeira vez sem acompanhamento de alguém que já conheça.” Fazer as “viagens” acompanhado por alguém que tenha experiência prévia com este tipo de substância ou esteja “sóbrio” é uma precaução aconselhável: há história de episódios dramáticos, alguns mesmo mortais (por exemplo saltar de uma janela porque a pessoa crê que pode voar), associados a este tipo consumo.
Outra das entrevistadas pelo DN, também lisboeta como Maria mas que não quis dar mais referências, como idade ou profissão, assumiu igualmente ter começado a usar substâncias psicadélicas – MD, variedade de MDMA, e 2C-B (2,5-dimetoxi-4-bromofenetilamina, de efeito semelhante ao MDMA) – durante a pandemia, por motivos próximos daqueles que Maria apresenta: “A razão... Acho que nem tinha pensado muito nisso até hoje, na altura foi só um “bora experimentar, deve ser giro” mas acho que faz sentido dizer que estava há meses confinada em casa a gerir família grande com alguns problemas e foi um bom escape.”
“Em teletrabalho, sem ninguém a julgar-me, tornou-se um hábito”
André, como Maria, está longe do perfil atribuído aos “drogados”: tem 30 anos, é analista financeiro numa empresa privada e está em teletrabalho desde março de 2020.
“Consumo drogas recreativamente”, diz ao DN. “Antes da pandemia saía bastante à noite – usava cocaína, pastilhas [MDMA], ganzas [canábis] e ketamina.” Mas foi a ketamina, explica, que o fez responder a um apelo, no Twitter, dirigido a quem tivesse consumido substâncias durante a pandemia e estivesse disponível para falar disso com esta jornalista. “É que o meu consumo se agravou um bocado. Porque faço micro-dosing, ou seja, uso quantidades muito pequenas, que me permitem ter uma moca e manter-me funcional - passado uma hora continuo o meu dia de trabalho. E em teletrabalho, só em casa, sem ninguém a julgar-me, tornou-se um hábito.” O que, comenta com auto-ironia, “não é fantástico.”
Apesar de considerar que a ketamina – também conhecida como K ou special K, muito usada como anestesiante veterinário mas também na medicina humana (ultimamente inclusive como antidepressivo), e que na qualidade de “droga de abuso” é integrada no grupo dos psicadélicos – não “agarra”, ou seja, não causa dependência, André considera que ter um efeito tão curto nas pequenas doses a torna “demasiado fácil”. Resultado: “Houve períodos em que
usava todos os dias. Senti que se estava a tornar o normal e experimentei parar.”
Começou a usar este medicamento (criado em 1965, e cujo uso recreativo se iniciou na década seguinte), em 2014. “É uma droga muito específica, que ficou muito popular em Portugal há três ou quatro anos. É um dissociativo, tem uma coisa meio trippy, meio viagem, mas sem alucinação visual. Como estares num sonho acordado: vês o mundo tal como está mas o feeling é bastante diferente. É um ácido light, introspetivo, muito gerível.” Paradoxalmente, é esse ser gerível que torna a K, no entender de André, perigosa. “Antes um grama dava-me para uma semana, agora já não. Quero parar, acho um péssimo hábito. Não é um vício, mas é fácil criar o hábito. Como é de compromisso menor que outras mais pesadas acaba por ser enganosa. E acho que pode afetar em termos cognitivos e de memória.”
Compra sempre a pessoas que conhece e nunca teve dificuldade em comprar durante todo o período da pandemia, mas o preço subiu no fim do verão passado. “Era 40 euros o grama, agora é 50. Vem de Berlim. Havia um grande dealer em Lisboa que desapareceu e a partir dessa altura o preço subiu.” Continuou também a fumar erva (flor seca de canábis) – “Vou sempre fumando toda a minha vida, já nem me lembro de não fumar” – e também fiz cocaína algumas vezes, mas não sozinho: na versão noite da pandemia, com outras pessoas, ao fim de semana. Mas não gosto de cocaína, em Lisboa é nojenta. E nunca falta, se estiveres disposto a fazer laxante ou ben-u-ron, que é o que misturam para cortar. Hoje em dia é só lixo.” Ri.
“Apareceram uns 10 dealers novos durante a pandemia”
Uma coisa que impressionou André neste contexto foi “a quantidade de pessoas que começaram a vender drogas. Por precariedade, por falta de alternativas, juntaram dinheiro para comprar em quantidade e entraram no negócio. Apareceram uns dez dealers novos durante a pandemia.” Alguns, garante, eram pessoas com quem saía à noite. “Quatro pelo menos. Não vendiam antes, e comedisse, çaram agora. De um dia para o outro tinham a operação montada.” Suspira. “Como consumidor não posso julgar. Mas era incapaz, creio. Sou um privilegiado, porém. Estive sempre a trabalhar e sempre a receber, relativamente bem, e em casa. Sou, como a economista Susana Peralta burguesia do teletrabalho.”
Estas três experiências podiam ser só aquilo a que se chama um outlier – exceções, fora de tendência. Mas João Pedro Matias, epidemiologista da unidade de saúde pública do Observatório Europeu das Drogas e Toxicodependência (OEDT), crê que não. Numa entrevista ao projeto Safe Journey, precisamente sobre o tema das drogas psicadélicas na pandemia, adianta que “uma das substâncias em que vimos aumentos de consumo foi a LSD – durante o primeiro confinamento, por volta de março, abril, vimos que foi um fenómeno a nível europeu, com muitas referências a consumos de LSD em casa, de pessoas que nunca tinham experimentado antes mas que por estarem confinadas, por estarem em processos de ansiedade, muitas vezes tentaram ter uma nova visão, uma visão diferente da realidade. Foram principalmente essas as razoes que apontaram para experimentarem pela primeira vez com drogas psicadélicas.”
Estarem fechadas em casa, reafirma ao DN, propiciou que se fizessem este tipo de experiências, de “fuga” mas também de “autoconhecimento”. Um radical “ir para fora cá dentro” mas que associa a “populações muito específicas”. Isto, explica, “liga-se um pouco à ciência dos psicadélicos que surgiu nos últimos anos. As pessoas que os usam acham que são uma classe à parte dentro dos consumidores de drogas. É verdade que há muito estudo relacionado com o potencial dos psicadélicos no combate à doença mental, mas é preciso ter em consideração que este consumo também causa problemas. A Kosmicare [organização sem fins lucrativos que se apresenta como “idealizando um mundo onde as drogas são usadas com liberdade e sabedoria” e que fornece informação e cuidados a quem as usa] abriu uma consulta para os consumidores de psicadélicos.”
Quanto à ketamina, embora se trate de uma substância pouco consumida pela população em geral, o epidemiologista sublinha que é “daquelas em relação às quais foi reportado um maior aumento de consumo durante a pandemia.” O motivo vai ao encontro da explicação de André: “É uma droga com a qual é mais fácil lidar num contexto ‘sozinho em casa’ que por exemplo o MDMA.”
O novo inquérito europeu online, que está a decorrer desde meio de março, só deverá ter resultados dentro de duas semanas, mas já há, a partir da análise das águas residuais, algumas ideias sobre a forma como evoluíram os consumos. Surpreendentemente, os de cocaína, uma droga associada à noite e às discotecas, não parecem ter diminuído – um dos entrevistados pelo DN é disso exemplo: Mário, de 52 anos, continuou a usar esta droga ao fim de semana com um pequeno grupo de amigos, no tal “contexto noite”, com copos e dança, de que fala André, e não reporta dificuldade em comprar nem alteração no preço ou na qualidade. Encontrou até, reporta, um novo dealer que oferece um grama por cada cinco que se compre (“Juntamo-nos e compramos para todos e ficamos com um de borla, é fixe”).
Também em relação à canábis, a substância mais popular, não terá havido globalmente grande alteração no uso: “Os níveis nas águas residuais mantiveram-se estáveis.” João Pedro Matias crê que ocorreu “um equilíbrio entre as pessoas que deixaram e as que fumam mais. Porque quem consumia mais frequentemente começou a consumir mais e os que consumiam menos frequentemente consumiram menos ou pararam.”
“Entregam drogas disfarçados de Uber Eats e Glovo”
Entre os consumidores de canábis que falaram com o DN há quem não tenha alterado o padrão de consumo. Mas a maioria aumentou a intensidade. Caso de Alexandre, 24 anos, que tem estado confinado a acabar uma tese de mestrado e relata estar a fumar mais. “Gasto cerca de 80 euros por mês em erva e antes gastava 50/60. Esta diferença de gastos tem a ver não só com o meu aumento de consumo, mas também com o preço. Antes da pandemia conseguia arranjar facilmente a mais ou menos 5 euros o grama, agora compro sempre a 7/8 euros.”
Houve um momento em que o produto esteve quase impossível de obter, no início do primeiro confinamento. Praticamente todos os entrevistados que consomem canábis se referem a essa escassez e ao aumento de preço, e responsáveis da política de droga como João Goulão, do SICAD, já o confirmaram publicamente.
Alexandre, que fuma com regularidade há cerca de seis anos, queixa-se até de que lhe chegaram a vender erva sem THC (tetrahidrocanabidiol, o componente estupefaciente da canábis). Quanto às vias de compra, que se tornaram um pouco mais complicadas em contexto de pandemia, pelo facto de haver muito poucas pessoas na rua e muito mais controlo da circulação pelas autoridades, assume que já antes da pandemia usava aquilo que tem sido designado de “uberização” do negócio e que os analistas consideram ter-se intensificado no contexto pandémico.
“Esses novos circuitos já existiam antes do início da pandemia”, informa. “Aliás uma das formas que mais utilizo para adquirir é exatamente essa, através de plataformas como o WhatsApp e Telegram [que são supostamente mais seguras pela sua comunicação encriptada] e de um modelo de entrega relativamente semelhante ao da Uber Eats, com uma lista inclusive das possibilidades de escolha, todas elas de canábis mas de variedades diferentes. O que no
“Tenho pelo menos quatro amigos que começaram a vender drogas. Por precariedade, por falta de alternativas, juntaram dinheiro para comprar em quantidade e em pouco tempo tinham a operação montada.”