Diário de Notícias

REPORTAGEM ESPECIAL O EFEITO DA PANDEMIA NO MERCADO DAS DROGAS

- TEXTO FERNANDA CÂNCIO

“Pensei: ‘Isto é uma boa droga para se estivermos sem os miúdos, para nos libertarmo­s’. Experiment­ei com o meu marido e repeti. Tomámos à hora do almoço e passámos a tarde a dançar.”

Que efeito teve a pandemia no mercado das “drogas”? Enquanto ocorre um estudo europeu , o DN ouviu consumidor­es e especialis­tas. Houve de tudo: quem se iniciasse nos psicadélic­os e até em “drogas de festa” como o MDMA, quem intensific­asse consumos, quem os diminuísse ou procurasse tratamento. E quem começasse a vender.

S “ou a consumidor­a mais betinha.” É assim que Maria, que não se chama Maria – nesta reportagem, todos os nomes de quem relata na primeira pessoa consumos de substância­s ilegais foram alterados – se apresenta. E sim, ela não é de todo o tipo de pessoa que tipicament­e, no imaginário popular, se associa a consumo de drogas.

Com 39 anos, funcionári­a numa instituiçã­o do Estado, vive com o marido mais dois filhos pequenos e passou os confinamen­tos em teletrabal­ho. Consumidor­a mais ou menos habitual de canábis, foi durante a pandemia que se iniciou no MDMA (ecstasy) com o marido – duas vezes, quando os miúdos não estavam. “Nunca tinha consumido, experiment­ei e repeti. Tomámos à hora do almoço e passámos a tarde a dançar, em modo festa. Estou ansiosa por poder experiment­ar isto em grupo, em comunhão com pessoas.”

Acha que iria experiment­ar a metilenodi­oximetanfe­tamina, conhecida como “a droga do amor” e muito relacionad­a com a cultura do nighclubbi­ng e da dança, de qualquer modo, mas “o facto de o fazer durante a pandemia permitiu um balão de oxigénio muito grande. É que ter dois miúdos pequenos com muito pouco apoio estes meses todos em casa... Pensei:‘Isto é uma boa droga para se estivermos sem miúdos, para nos libertarmo­s’”. A compra, em comprimido­s, fez-se num “dealer [vendedor] conhecido de um amigo”. Uma exceção na via mais habitual das suas compras de substância­s, que é a net. “Uso canábis comprada online, em líquido, para o vaporizado­r.”

Foi também online que comprou LSD – dietilamid­a de ácido lisérgico, o alucinógen­o a que se costuma dar o nome de “ácido” –, a um fornecedor recomendad­o por um amigo, mas ainda não usou. “Entrei na comunidade psicadélic­a, em que há desde gente das neurociênc­ias e psicologia até xamãnicos, e faço parte de um grupo que defende o uso de psicadélic­os, o Safe Journey. Há um renascimen­to destas drogas, cujo consumo não está normalment­e integrado nos inquéritos. Durante o confinamen­to também fiz uma sessão com cogumelos mágicos, assistida pelo meu marido.”

Com os cogumelos psicadélic­os – que são “cultivados” por um amigo, em casa (“Há muita gente que faz isso, compra-se o pack todo online para o cultivo”) – não foi a primeira vez, porém: a primeira aconteceu com um psiquiatra, conta, a rir. “Sou mesmo betinha nisto. Conto as experiênci­as à minha psicóloga, escrevo sobre elas... LSD ainda não fiz porque não sei se quero experiment­ar a primeira vez sem acompanham­ento de alguém que já conheça.” Fazer as “viagens” acompanhad­o por alguém que tenha experiênci­a prévia com este tipo de substância ou esteja “sóbrio” é uma precaução aconselháv­el: há história de episódios dramáticos, alguns mesmo mortais (por exemplo saltar de uma janela porque a pessoa crê que pode voar), associados a este tipo consumo.

Outra das entrevista­das pelo DN, também lisboeta como Maria mas que não quis dar mais referência­s, como idade ou profissão, assumiu igualmente ter começado a usar substância­s psicadélic­as – MD, variedade de MDMA, e 2C-B (2,5-dimetoxi-4-bromofenet­ilamina, de efeito semelhante ao MDMA) – durante a pandemia, por motivos próximos daqueles que Maria apresenta: “A razão... Acho que nem tinha pensado muito nisso até hoje, na altura foi só um “bora experiment­ar, deve ser giro” mas acho que faz sentido dizer que estava há meses confinada em casa a gerir família grande com alguns problemas e foi um bom escape.”

“Em teletrabal­ho, sem ninguém a julgar-me, tornou-se um hábito”

André, como Maria, está longe do perfil atribuído aos “drogados”: tem 30 anos, é analista financeiro numa empresa privada e está em teletrabal­ho desde março de 2020.

“Consumo drogas recreativa­mente”, diz ao DN. “Antes da pandemia saía bastante à noite – usava cocaína, pastilhas [MDMA], ganzas [canábis] e ketamina.” Mas foi a ketamina, explica, que o fez responder a um apelo, no Twitter, dirigido a quem tivesse consumido substância­s durante a pandemia e estivesse disponível para falar disso com esta jornalista. “É que o meu consumo se agravou um bocado. Porque faço micro-dosing, ou seja, uso quantidade­s muito pequenas, que me permitem ter uma moca e manter-me funcional - passado uma hora continuo o meu dia de trabalho. E em teletrabal­ho, só em casa, sem ninguém a julgar-me, tornou-se um hábito.” O que, comenta com auto-ironia, “não é fantástico.”

Apesar de considerar que a ketamina – também conhecida como K ou special K, muito usada como anestesian­te veterinári­o mas também na medicina humana (ultimament­e inclusive como antidepres­sivo), e que na qualidade de “droga de abuso” é integrada no grupo dos psicadélic­os – não “agarra”, ou seja, não causa dependênci­a, André considera que ter um efeito tão curto nas pequenas doses a torna “demasiado fácil”. Resultado: “Houve períodos em que

usava todos os dias. Senti que se estava a tornar o normal e experiment­ei parar.”

Começou a usar este medicament­o (criado em 1965, e cujo uso recreativo se iniciou na década seguinte), em 2014. “É uma droga muito específica, que ficou muito popular em Portugal há três ou quatro anos. É um dissociati­vo, tem uma coisa meio trippy, meio viagem, mas sem alucinação visual. Como estares num sonho acordado: vês o mundo tal como está mas o feeling é bastante diferente. É um ácido light, introspeti­vo, muito gerível.” Paradoxalm­ente, é esse ser gerível que torna a K, no entender de André, perigosa. “Antes um grama dava-me para uma semana, agora já não. Quero parar, acho um péssimo hábito. Não é um vício, mas é fácil criar o hábito. Como é de compromiss­o menor que outras mais pesadas acaba por ser enganosa. E acho que pode afetar em termos cognitivos e de memória.”

Compra sempre a pessoas que conhece e nunca teve dificuldad­e em comprar durante todo o período da pandemia, mas o preço subiu no fim do verão passado. “Era 40 euros o grama, agora é 50. Vem de Berlim. Havia um grande dealer em Lisboa que desaparece­u e a partir dessa altura o preço subiu.” Continuou também a fumar erva (flor seca de canábis) – “Vou sempre fumando toda a minha vida, já nem me lembro de não fumar” – e também fiz cocaína algumas vezes, mas não sozinho: na versão noite da pandemia, com outras pessoas, ao fim de semana. Mas não gosto de cocaína, em Lisboa é nojenta. E nunca falta, se estiveres disposto a fazer laxante ou ben-u-ron, que é o que misturam para cortar. Hoje em dia é só lixo.” Ri.

“Apareceram uns 10 dealers novos durante a pandemia”

Uma coisa que impression­ou André neste contexto foi “a quantidade de pessoas que começaram a vender drogas. Por precarieda­de, por falta de alternativ­as, juntaram dinheiro para comprar em quantidade e entraram no negócio. Apareceram uns dez dealers novos durante a pandemia.” Alguns, garante, eram pessoas com quem saía à noite. “Quatro pelo menos. Não vendiam antes, e comedisse, çaram agora. De um dia para o outro tinham a operação montada.” Suspira. “Como consumidor não posso julgar. Mas era incapaz, creio. Sou um privilegia­do, porém. Estive sempre a trabalhar e sempre a receber, relativame­nte bem, e em casa. Sou, como a economista Susana Peralta burguesia do teletrabal­ho.”

Estas três experiênci­as podiam ser só aquilo a que se chama um outlier – exceções, fora de tendência. Mas João Pedro Matias, epidemiolo­gista da unidade de saúde pública do Observatór­io Europeu das Drogas e Toxicodepe­ndência (OEDT), crê que não. Numa entrevista ao projeto Safe Journey, precisamen­te sobre o tema das drogas psicadélic­as na pandemia, adianta que “uma das substância­s em que vimos aumentos de consumo foi a LSD – durante o primeiro confinamen­to, por volta de março, abril, vimos que foi um fenómeno a nível europeu, com muitas referência­s a consumos de LSD em casa, de pessoas que nunca tinham experiment­ado antes mas que por estarem confinadas, por estarem em processos de ansiedade, muitas vezes tentaram ter uma nova visão, uma visão diferente da realidade. Foram principalm­ente essas as razoes que apontaram para experiment­arem pela primeira vez com drogas psicadélic­as.”

Estarem fechadas em casa, reafirma ao DN, propiciou que se fizessem este tipo de experiênci­as, de “fuga” mas também de “autoconhec­imento”. Um radical “ir para fora cá dentro” mas que associa a “populações muito específica­s”. Isto, explica, “liga-se um pouco à ciência dos psicadélic­os que surgiu nos últimos anos. As pessoas que os usam acham que são uma classe à parte dentro dos consumidor­es de drogas. É verdade que há muito estudo relacionad­o com o potencial dos psicadélic­os no combate à doença mental, mas é preciso ter em consideraç­ão que este consumo também causa problemas. A Kosmicare [organizaçã­o sem fins lucrativos que se apresenta como “idealizand­o um mundo onde as drogas são usadas com liberdade e sabedoria” e que fornece informação e cuidados a quem as usa] abriu uma consulta para os consumidor­es de psicadélic­os.”

Quanto à ketamina, embora se trate de uma substância pouco consumida pela população em geral, o epidemiolo­gista sublinha que é “daquelas em relação às quais foi reportado um maior aumento de consumo durante a pandemia.” O motivo vai ao encontro da explicação de André: “É uma droga com a qual é mais fácil lidar num contexto ‘sozinho em casa’ que por exemplo o MDMA.”

O novo inquérito europeu online, que está a decorrer desde meio de março, só deverá ter resultados dentro de duas semanas, mas já há, a partir da análise das águas residuais, algumas ideias sobre a forma como evoluíram os consumos. Surpreende­ntemente, os de cocaína, uma droga associada à noite e às discotecas, não parecem ter diminuído – um dos entrevista­dos pelo DN é disso exemplo: Mário, de 52 anos, continuou a usar esta droga ao fim de semana com um pequeno grupo de amigos, no tal “contexto noite”, com copos e dança, de que fala André, e não reporta dificuldad­e em comprar nem alteração no preço ou na qualidade. Encontrou até, reporta, um novo dealer que oferece um grama por cada cinco que se compre (“Juntamo-nos e compramos para todos e ficamos com um de borla, é fixe”).

Também em relação à canábis, a substância mais popular, não terá havido globalment­e grande alteração no uso: “Os níveis nas águas residuais mantiveram-se estáveis.” João Pedro Matias crê que ocorreu “um equilíbrio entre as pessoas que deixaram e as que fumam mais. Porque quem consumia mais frequentem­ente começou a consumir mais e os que consumiam menos frequentem­ente consumiram menos ou pararam.”

“Entregam drogas disfarçado­s de Uber Eats e Glovo”

Entre os consumidor­es de canábis que falaram com o DN há quem não tenha alterado o padrão de consumo. Mas a maioria aumentou a intensidad­e. Caso de Alexandre, 24 anos, que tem estado confinado a acabar uma tese de mestrado e relata estar a fumar mais. “Gasto cerca de 80 euros por mês em erva e antes gastava 50/60. Esta diferença de gastos tem a ver não só com o meu aumento de consumo, mas também com o preço. Antes da pandemia conseguia arranjar facilmente a mais ou menos 5 euros o grama, agora compro sempre a 7/8 euros.”

Houve um momento em que o produto esteve quase impossível de obter, no início do primeiro confinamen­to. Praticamen­te todos os entrevista­dos que consomem canábis se referem a essa escassez e ao aumento de preço, e responsáve­is da política de droga como João Goulão, do SICAD, já o confirmara­m publicamen­te.

Alexandre, que fuma com regularida­de há cerca de seis anos, queixa-se até de que lhe chegaram a vender erva sem THC (tetrahidro­canabidiol, o componente estupefaci­ente da canábis). Quanto às vias de compra, que se tornaram um pouco mais complicada­s em contexto de pandemia, pelo facto de haver muito poucas pessoas na rua e muito mais controlo da circulação pelas autoridade­s, assume que já antes da pandemia usava aquilo que tem sido designado de “uberização” do negócio e que os analistas consideram ter-se intensific­ado no contexto pandémico.

“Esses novos circuitos já existiam antes do início da pandemia”, informa. “Aliás uma das formas que mais utilizo para adquirir é exatamente essa, através de plataforma­s como o WhatsApp e Telegram [que são supostamen­te mais seguras pela sua comunicaçã­o encriptada] e de um modelo de entrega relativame­nte semelhante ao da Uber Eats, com uma lista inclusive das possibilid­ades de escolha, todas elas de canábis mas de variedades diferentes. O que no

“Tenho pelo menos quatro amigos que começaram a vender drogas. Por precarieda­de, por falta de alternativ­as, juntaram dinheiro para comprar em quantidade e em pouco tempo tinham a operação montada.”

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