Última cartada. Defesa regressa à tese de “morte natural”. DN teve acesso à perícia
As peritas da defesa acusam o autor da autópsia de “erros médicos e incongruências científicas” e de ter tirado “conclusões abusivas sobre a causa da morte e respetiva etiologia médico-legal”.
Termina hoje, com as alegações finais, o julgamento relativo à morte do cidadão ucraniano sob custódia do SEF em março de 2020. Como no caso de George Floyd, a defesa centra estratégia na tentativa de criar dúvida sobre causa da morte: ou não houve agressões ou não foram suficientes para matar.
Na última semana, vimos que no julgamento do ex-polícia Derek Chauvin, acusado do homicídio de George Floyd, a defesa tentou contrariar a ideia de que este morreu asfixiado pelo facto de o agente ter assentado um joelho e todo o seu peso sobre o pescoço de Floyd, quando este estava deitado no chão de mãos algemadas atrás das costas. A causa da morte, alega o advogado de Chauvin, que também tentou negar que o agente tinha o joelho sobre o pescoço de Floyd, teria sido uma intoxicação por drogas.
Algo semelhante ocorrerá esta segunda-feira na última sessão do julgamento de Luís Silva, Bruno Sousa e Duarte Laja, os inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras acusados pelo Ministério Público do homicídio qualificado de Ihor Homeniuk, a 12 de março de 2020, quando este estava sob custódia desta polícia.
No caso de Floyd existem vídeos, de várias perspetivas, da ação de Chauvin e dos últimos momentos de Floyd. Ainda assim, a causa da morte é matéria de discussão: uma coisa é o que parece, outra aquilo que se pode provar sem sombra de dúvida – porque uma condenação tem de assentar em provas.
Não temos, no que respeita à morte de Ihor Homeniuk, vídeos do que sucedeu. As câmaras de vigilância daquele centro de etenção do SEF não “apanham” a divisão em que passou as últimas horas da sua vida; só permitem saber quem ali entrou e quanto tempo ali esteve, com que disposição entrou e saiu.
Assim, o tribunal vai ter de decidir com base nessa informação, nos testemunhos e na prova pericial – que neste caso se atém à autópsia, já que não houve exame da divisão onde a morte ocorreu, recolha de ADN do corpo e dos arguidos, respetivo vestuário e calçado (há, de acordo com o relatório da autopsia, uma “impressão digital” de uma sola de bota no corpo de Ihor, mas não houve exame do calçado dos arguidos para procurar compatibilidade). A única tentativa de recolha de ADN ocorreu mais de 18 dias depois da morte, nos bastões que estavam na posse de dois dos arguidos (e que um deles, Luís Silva, empunhava quando entrou na divisão onde estava Ihor) quando foram detidos; um dos bastões tinha vestígios de sangue humano mas a amostra não permitiu aferir da compatibilidade com o ADN de Ihor.
Não há, pois, nenhuma “smoking gun” ou “arma fumegante” na mão dos três arguidos que os indique sem sombra de dúvida como responsáveis pelo que aconteceu a Ihor.
“Conclusões abusivas sobre a causa da morte”
Assim, o esforço da defesa nestas alegações finais não se deverá ater, como ocorreu ao longo do julgamento iniciado a 2 de fevereiro, a negar que os arguidos agrediram o cidadão ucraniano e a criar a dúvida sobre se este foi agredido por outras pessoas (nomeadamente seguranças), assim como sobre se cabia aos três, e nomeadamente ao arguido Luís Silva, proprietário das algemas, a obrigação de desalgemar Ihor, ou se essa responsabilidade era dos superiores hierárquicos – e seriam então estes os responsáveis pelo facto de a vítima ter ficado mais de oito horas algemada.
A linha de ataque à acusação deverá ser outra. Pelo menos Maria Manuel Candal e Ricardo Sá Fernandes, respetivamente advogados de Luís Silva e Bruno Sousa, deverão basear-se num relatório pericial que juntaram ao processo e cujas autoras, médicas legistas, não foram admitidas pelo tribunal como testemunhas, para tentar criar dúvidas sobre a causa da morte e fazer vingar a ideia de que a autópsia foi mal feita, questionando, como aliás já sucedeu quando este testemunhou, a competência técnica do médico Carlos Durão, que como perito do Instituto de Medicina Legal efetuou o exame post-mortem do cadáver.
Afinal, sustentarão, Ihor não morreu, como conclui a autópsia, por “asfixia mecânica” em consequência de agressões que lhe fraturaram várias costelas e do facto de ter sido deixado algemado de mãos atrás das costas, deitado, horas a fio – conduzindo àquilo a que se dá o nome de “asfixia posicional” e que seria causa concomitante. A morte terá sido então devida a “causas naturais”, relacionadas com o facto de ser alcoólico e estar em abstinência – eventualmente em conjugação com ter estado tanto tempo imobilizado e sem assistência.
É isso que diz o relatório, ao qual o DN teve acesso, das peritas Ana Rita Pereira e Sara Vilão, especialistas de Medicina Legal que acusam Durão de “erros médicos e incongruências científicas”, assim como de “falta de habilitações e competências” para realizar uma autópsia de particular complexidade, resultando em “conclusões abusivas sobre a causa da morte respetiva etiologia médico-legal.”
A conclusão das peritas é de que “tudo indica que a morte tenha sido devida a uma causa natural.” Com base nas imagens da autópsia, contestam que as fraturas de costelas existentes se tenham devido a agressões, atribuindo-as às tentativas sucessivas de reanimação, e aventam que a morte de Ihor “se tenha devido a insuficiência respiratória fatal decorrente da rabdomiólise [destruição e necrose muscular] e resultante das múltiplas crises convulsivas sofridas em contexto de síndrome de abstinência alcoólica não tratado. Esta é morte de causa natural.”
Admitem porém que a imobilização pode ter tido um papel na morte: “Caso a vítima tenha sofrido crises convulsivas não assistidas quando estava imobilizada, essa imobilização poderá ter sido prejudicial, por limitar os movimentos da vítima durante a crise convulsiva, podendo levar a uma maior libertação de produtos da degradação muscular, levando a um agravamento da rabdomiólise e de todo o quadro clínico.”
Outra vez a “morte súbita”
É o regresso à explicação da “morte súbita” dada pelo SEF ao Ministério Público (MP) e à Embaixada da Ucrânia no dia da morte e que quer o MP na acusação quer a Inspeção Geral da Adminsitração Interna no seu relatório sobre o caso consideram fazer parte de uma tentativa de encobrimento orquestrada a alto nível, sob a batuta do então diretor de Fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques, demitido a 30 de março, na sequência da detenção dos três arguidos, e que determinou não apenas vários processos disciplinares a funcionários do SEF (até agora são 13) como um processo-crime que ainda corre, relacionado, de acordo com o MP, com falsificação de documentos.
Foi, recorde-se, esta explicação que levou a procuradora Alexandra Catatau - que estava de serviço ao fim do dia de 12 de março de 2020 e recebeu o telefonema do inspetor do SEF Ricardo Giriante a comunicar-lhe (não se sabe a que horas, já que ninguém no tribunal o perguntou à magistrada e ela disse ao DN não se lembrar) aquele óbito sob custódia - a permitir que o cadáver fosse “levantado”, ou seja, levado para o Instituto de Medicina Legal, sem ordenar uma investigação e a preservação do local e dos vestígios.
Isto apesar de esta responsável do MP ter admitido, ao ser ouvida pelo tribunal a 24 de março, que o dito inspetor Giriante a advertira de que o corpo apresentava marcas: “Cuidado que este senhor está um bocado maltratado.” Mas Catatau não valorizou o facto, aceitando a explicação de que tinha havido “uma altercação” e a “necessidade de o conter”, e que a morte se devera a “doença epilética” pela qual o homem até já teria sido assistido no hospital.
Esta decisão da procuradora, fazendo fé na causa de morte adiantada pelo SEF, determinou que a investigação da morte de Ihor Homeniuk se iniciasse tardiamente e sem acesso a vestígios eventualmente deixados na sala em que morreu e no próprio corpo e vestuário do ciidentificados dadão ucraniano – e até a eventuais testemunhos de outros estrangeiros sob custódia do SEF; nenhum dos detidos que estavam, à altura dos acontecimentos, no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária do SEF no aeroporto de Lisboa foi alguma vez inquirido quer pela PJ quer pelo MP.
Autópsia é base do caso do MP
Aliás a investigação da PJ só se iniciaria realmente a partir de 16 de março, segunda-feira, quando a brigada de homicídios desta polícia pede informações ao SEF. Como se sabe, só após a autópsia, ordenada pela mesma procuradora, e que ocorreu a 13 de março, a PJ foi alertada para a possibilidade de se estar perante uma morte “de etiologia homicida”.
Quem deu o alerta foi precisamente o médico Carlos Durão, a 14 de março, sábado, o mesmo dia em que também chegou à PJ uma denúncia anónima a responsabilizar três inspetores do SEF, dois dos quais – Duarte Laja e Luís Silva – pelo nome, pela morte de Ihor, e narrando uma parte dos factos em que se baseia a acusação.
A atuação de Durão, quer no aviso à PJ quer na realização da autópsia e no retirar das respetivas conclusões, é pois central no processo: é com base na sua perícia e na causa de morte nela apontada que o MP constrói a acusação.
Poderia existir igualmente responsabilidade objetiva do SEF (a qual foi a base da indemnização de cerca de 800 mil euros arbitrada pela Provedora de Justiça e paga por esta força de segurança à família) e subjetiva de inspetores e seguranças na morte, caso esta tivesse ocorrido por causas naturais conjugadas com a “contenção” e falta de socorro – desde logo, omissão de auxílio ou homicídio por negligência.
Mas não poderia haver uma acusação de homicídio qualificado ou, como advertiu o coletivo de juízes na sessão da última quarta-feira poder vir a ocorrer em sede da decisão, ofensas à integridade física graves qualificadas e agravadas pelo resultado.
Esta advertência dos juízes às partes, e à qual estas poderão ainda apresentar contestação, não só nas alegações desta segunda-feira mas pedindo por exemplo a apresentação de nova prova, parece poder indicar que o coletivo considera haver prova para essa qualificação dos factos e eventualmente para uma condenação nesse sentido – querendo dizer que não “compra” a tese das peritas da defesa - que já conhece e cujo testemunho, refira-se de novo, considerou não ser necessário para a descoberta da verdade - e aceita como válidas as conclusões da autópsia feita por Carlos Durão.
Mas, naturalmente, está tudo em aberto até ao dia do acórdão – inclusive a hipótese, para a qual o DN já chamou a atenção, de poderem ainda ser extraídas certidões em relação aos indícios de crimes que resultam dos depoimentos de algumas das testemunhas.
“Tudo indica que a morte tenha sido devida a uma causa natural. (...) Devida a insuficiência respiratória fatal.” Não há uma “smoking gun” na mão dos arguidos que os indique sem sombra de dúvida como responsáveis pelo que aconteceu a Ihor. A única recolha de ADN aconteceu 18 dias após a morte e foi inconclusiva.