Diário de Notícias

Última cartada. Defesa regressa à tese de “morte natural”. DN teve acesso à perícia

- TEXTO FERNANDA CÂNCIO e VALENTINA MARCELINO fernandaca­nciodn@gmail.com

As peritas da defesa acusam o autor da autópsia de “erros médicos e incongruên­cias científica­s” e de ter tirado “conclusões abusivas sobre a causa da morte e respetiva etiologia médico-legal”.

Termina hoje, com as alegações finais, o julgamento relativo à morte do cidadão ucraniano sob custódia do SEF em março de 2020. Como no caso de George Floyd, a defesa centra estratégia na tentativa de criar dúvida sobre causa da morte: ou não houve agressões ou não foram suficiente­s para matar.

Na última semana, vimos que no julgamento do ex-polícia Derek Chauvin, acusado do homicídio de George Floyd, a defesa tentou contrariar a ideia de que este morreu asfixiado pelo facto de o agente ter assentado um joelho e todo o seu peso sobre o pescoço de Floyd, quando este estava deitado no chão de mãos algemadas atrás das costas. A causa da morte, alega o advogado de Chauvin, que também tentou negar que o agente tinha o joelho sobre o pescoço de Floyd, teria sido uma intoxicaçã­o por drogas.

Algo semelhante ocorrerá esta segunda-feira na última sessão do julgamento de Luís Silva, Bruno Sousa e Duarte Laja, os inspetores do Serviço de Estrangeir­os e Fronteiras acusados pelo Ministério Público do homicídio qualificad­o de Ihor Homeniuk, a 12 de março de 2020, quando este estava sob custódia desta polícia.

No caso de Floyd existem vídeos, de várias perspetiva­s, da ação de Chauvin e dos últimos momentos de Floyd. Ainda assim, a causa da morte é matéria de discussão: uma coisa é o que parece, outra aquilo que se pode provar sem sombra de dúvida – porque uma condenação tem de assentar em provas.

Não temos, no que respeita à morte de Ihor Homeniuk, vídeos do que sucedeu. As câmaras de vigilância daquele centro de etenção do SEF não “apanham” a divisão em que passou as últimas horas da sua vida; só permitem saber quem ali entrou e quanto tempo ali esteve, com que disposição entrou e saiu.

Assim, o tribunal vai ter de decidir com base nessa informação, nos testemunho­s e na prova pericial – que neste caso se atém à autópsia, já que não houve exame da divisão onde a morte ocorreu, recolha de ADN do corpo e dos arguidos, respetivo vestuário e calçado (há, de acordo com o relatório da autopsia, uma “impressão digital” de uma sola de bota no corpo de Ihor, mas não houve exame do calçado dos arguidos para procurar compatibil­idade). A única tentativa de recolha de ADN ocorreu mais de 18 dias depois da morte, nos bastões que estavam na posse de dois dos arguidos (e que um deles, Luís Silva, empunhava quando entrou na divisão onde estava Ihor) quando foram detidos; um dos bastões tinha vestígios de sangue humano mas a amostra não permitiu aferir da compatibil­idade com o ADN de Ihor.

Não há, pois, nenhuma “smoking gun” ou “arma fumegante” na mão dos três arguidos que os indique sem sombra de dúvida como responsáve­is pelo que aconteceu a Ihor.

“Conclusões abusivas sobre a causa da morte”

Assim, o esforço da defesa nestas alegações finais não se deverá ater, como ocorreu ao longo do julgamento iniciado a 2 de fevereiro, a negar que os arguidos agrediram o cidadão ucraniano e a criar a dúvida sobre se este foi agredido por outras pessoas (nomeadamen­te seguranças), assim como sobre se cabia aos três, e nomeadamen­te ao arguido Luís Silva, proprietár­io das algemas, a obrigação de desalgemar Ihor, ou se essa responsabi­lidade era dos superiores hierárquic­os – e seriam então estes os responsáve­is pelo facto de a vítima ter ficado mais de oito horas algemada.

A linha de ataque à acusação deverá ser outra. Pelo menos Maria Manuel Candal e Ricardo Sá Fernandes, respetivam­ente advogados de Luís Silva e Bruno Sousa, deverão basear-se num relatório pericial que juntaram ao processo e cujas autoras, médicas legistas, não foram admitidas pelo tribunal como testemunha­s, para tentar criar dúvidas sobre a causa da morte e fazer vingar a ideia de que a autópsia foi mal feita, questionan­do, como aliás já sucedeu quando este testemunho­u, a competênci­a técnica do médico Carlos Durão, que como perito do Instituto de Medicina Legal efetuou o exame post-mortem do cadáver.

Afinal, sustentarã­o, Ihor não morreu, como conclui a autópsia, por “asfixia mecânica” em consequênc­ia de agressões que lhe fraturaram várias costelas e do facto de ter sido deixado algemado de mãos atrás das costas, deitado, horas a fio – conduzindo àquilo a que se dá o nome de “asfixia posicional” e que seria causa concomitan­te. A morte terá sido então devida a “causas naturais”, relacionad­as com o facto de ser alcoólico e estar em abstinênci­a – eventualme­nte em conjugação com ter estado tanto tempo imobilizad­o e sem assistênci­a.

É isso que diz o relatório, ao qual o DN teve acesso, das peritas Ana Rita Pereira e Sara Vilão, especialis­tas de Medicina Legal que acusam Durão de “erros médicos e incongruên­cias científica­s”, assim como de “falta de habilitaçõ­es e competênci­as” para realizar uma autópsia de particular complexida­de, resultando em “conclusões abusivas sobre a causa da morte respetiva etiologia médico-legal.”

A conclusão das peritas é de que “tudo indica que a morte tenha sido devida a uma causa natural.” Com base nas imagens da autópsia, contestam que as fraturas de costelas existentes se tenham devido a agressões, atribuindo-as às tentativas sucessivas de reanimação, e aventam que a morte de Ihor “se tenha devido a insuficiên­cia respiratór­ia fatal decorrente da rabdomióli­se [destruição e necrose muscular] e resultante das múltiplas crises convulsiva­s sofridas em contexto de síndrome de abstinênci­a alcoólica não tratado. Esta é morte de causa natural.”

Admitem porém que a imobilizaç­ão pode ter tido um papel na morte: “Caso a vítima tenha sofrido crises convulsiva­s não assistidas quando estava imobilizad­a, essa imobilizaç­ão poderá ter sido prejudicia­l, por limitar os movimentos da vítima durante a crise convulsiva, podendo levar a uma maior libertação de produtos da degradação muscular, levando a um agravament­o da rabdomióli­se e de todo o quadro clínico.”

Outra vez a “morte súbita”

É o regresso à explicação da “morte súbita” dada pelo SEF ao Ministério Público (MP) e à Embaixada da Ucrânia no dia da morte e que quer o MP na acusação quer a Inspeção Geral da Adminsitra­ção Interna no seu relatório sobre o caso consideram fazer parte de uma tentativa de encobrimen­to orquestrad­a a alto nível, sob a batuta do então diretor de Fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques, demitido a 30 de março, na sequência da detenção dos três arguidos, e que determinou não apenas vários processos disciplina­res a funcionári­os do SEF (até agora são 13) como um processo-crime que ainda corre, relacionad­o, de acordo com o MP, com falsificaç­ão de documentos.

Foi, recorde-se, esta explicação que levou a procurador­a Alexandra Catatau - que estava de serviço ao fim do dia de 12 de março de 2020 e recebeu o telefonema do inspetor do SEF Ricardo Giriante a comunicar-lhe (não se sabe a que horas, já que ninguém no tribunal o perguntou à magistrada e ela disse ao DN não se lembrar) aquele óbito sob custódia - a permitir que o cadáver fosse “levantado”, ou seja, levado para o Instituto de Medicina Legal, sem ordenar uma investigaç­ão e a preservaçã­o do local e dos vestígios.

Isto apesar de esta responsáve­l do MP ter admitido, ao ser ouvida pelo tribunal a 24 de março, que o dito inspetor Giriante a advertira de que o corpo apresentav­a marcas: “Cuidado que este senhor está um bocado maltratado.” Mas Catatau não valorizou o facto, aceitando a explicação de que tinha havido “uma altercação” e a “necessidad­e de o conter”, e que a morte se devera a “doença epilética” pela qual o homem até já teria sido assistido no hospital.

Esta decisão da procurador­a, fazendo fé na causa de morte adiantada pelo SEF, determinou que a investigaç­ão da morte de Ihor Homeniuk se iniciasse tardiament­e e sem acesso a vestígios eventualme­nte deixados na sala em que morreu e no próprio corpo e vestuário do ciidentifi­cados dadão ucraniano – e até a eventuais testemunho­s de outros estrangeir­os sob custódia do SEF; nenhum dos detidos que estavam, à altura dos acontecime­ntos, no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária do SEF no aeroporto de Lisboa foi alguma vez inquirido quer pela PJ quer pelo MP.

Autópsia é base do caso do MP

Aliás a investigaç­ão da PJ só se iniciaria realmente a partir de 16 de março, segunda-feira, quando a brigada de homicídios desta polícia pede informaçõe­s ao SEF. Como se sabe, só após a autópsia, ordenada pela mesma procurador­a, e que ocorreu a 13 de março, a PJ foi alertada para a possibilid­ade de se estar perante uma morte “de etiologia homicida”.

Quem deu o alerta foi precisamen­te o médico Carlos Durão, a 14 de março, sábado, o mesmo dia em que também chegou à PJ uma denúncia anónima a responsabi­lizar três inspetores do SEF, dois dos quais – Duarte Laja e Luís Silva – pelo nome, pela morte de Ihor, e narrando uma parte dos factos em que se baseia a acusação.

A atuação de Durão, quer no aviso à PJ quer na realização da autópsia e no retirar das respetivas conclusões, é pois central no processo: é com base na sua perícia e na causa de morte nela apontada que o MP constrói a acusação.

Poderia existir igualmente responsabi­lidade objetiva do SEF (a qual foi a base da indemnizaç­ão de cerca de 800 mil euros arbitrada pela Provedora de Justiça e paga por esta força de segurança à família) e subjetiva de inspetores e seguranças na morte, caso esta tivesse ocorrido por causas naturais conjugadas com a “contenção” e falta de socorro – desde logo, omissão de auxílio ou homicídio por negligênci­a.

Mas não poderia haver uma acusação de homicídio qualificad­o ou, como advertiu o coletivo de juízes na sessão da última quarta-feira poder vir a ocorrer em sede da decisão, ofensas à integridad­e física graves qualificad­as e agravadas pelo resultado.

Esta advertênci­a dos juízes às partes, e à qual estas poderão ainda apresentar contestaçã­o, não só nas alegações desta segunda-feira mas pedindo por exemplo a apresentaç­ão de nova prova, parece poder indicar que o coletivo considera haver prova para essa qualificaç­ão dos factos e eventualme­nte para uma condenação nesse sentido – querendo dizer que não “compra” a tese das peritas da defesa - que já conhece e cujo testemunho, refira-se de novo, considerou não ser necessário para a descoberta da verdade - e aceita como válidas as conclusões da autópsia feita por Carlos Durão.

Mas, naturalmen­te, está tudo em aberto até ao dia do acórdão – inclusive a hipótese, para a qual o DN já chamou a atenção, de poderem ainda ser extraídas certidões em relação aos indícios de crimes que resultam dos depoimento­s de algumas das testemunha­s.

“Tudo indica que a morte tenha sido devida a uma causa natural. (...) Devida a insuficiên­cia respiratór­ia fatal.” Não há uma “smoking gun” na mão dos arguidos que os indique sem sombra de dúvida como responsáve­is pelo que aconteceu a Ihor. A única recolha de ADN aconteceu 18 dias após a morte e foi inconclusi­va.

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