Fernando Diogo “Em Portugal, há uma pobreza tradicional: é persistente e transmite-se”
ENTREVISTA Sociólogo, professor da Universidade dos Açores e investigador do CICS-Nova, coordenou equipa de investigadores.
O berço é fundamental?
É uma das principais conclusões do estudo e que retira aquela ideia de nova pobreza. Em Portugal, há uma pobreza tradicional que por um lado é persistente e, por outro, tende a transmitir-se entre gerações. Pretendemos perceber como é que se transmite e, aqui, entram os três D da pobreza: divórcio, desemprego e doença. Juntámos no título o F de família. É uma boa sistematização, mas estamos a olhar numa perspetiva microssocial e que tem de ser complementada com uma análise macrossocial. Não podemos esquecer o contexto socioeconómico que contribui fortemente para a reprodução de pobreza. Há um elevado peso que a organização do mercado de trabalho e das políticas do Estado tem na produção e reprodução da pobreza. O contexto é fundamental, quer ao nível da estrutura quer da conjuntura, como a de 2008-2014. Mas um terço dos pobres são trabalhadores, surpreende-o?
Não me surpreendeu que as pessoas pobres trabalhassem (estudo o tema há muito tempo), mas foi uma surpresa encontrar quem seja efetivo há muitos anos.
Que outras surpresas tiveram? Há um segundo grupo de fatores que nos surpreenderam, de tal forma que não os tínhamos posto no guião, daí a vantagem das entrevistas com perguntas em aberto. Foram os impactos da doença (crónica ou incapacitante) e da morte, que incluímos no D de doença, e as referências à emigração. A morte é mais referida pelos empregados, a doença pelos reformados e desempregados, a emigração está nos quatro perfis.
Emigração que não resultou?
É claro que não estão emigrados, mas há experiências de emigração malsucedida e emigração de familiares próximos – pais, filhos, irmãos –, muitos que os apoiam. E imigrantes?
Entrevistámos mais trabalhadores. A imigração faz-se na perspetiva de melhorar a vida mas, neste caso, não aconteceu.
Quais são os fatores que se repetem nos quatro perfis? Partilham a condição de ser pobre e, onde há mais semelhanças, é na infância e na escolaridade. Há pessoas que tiveram uma infância infeliz e, algumas, muito traumatizante. Infâncias marcadas por violência, abandono, alcoolismo do progenitor, etc.
A escola pode ser uma forma de escapar à pobreza?
A maior parte das pessoas abandonou a escola precocemente e entrou cedo no mercado de trabalho. Mas há um grupo pequeno no perfil dos precários de indivíduos com qualificação – entrevistámos uma licenciada e estudantes universitários. A ideia que uma licenciatura protege as pessoas da pobreza já não é verdade, embora continue a proteger bastante. A diferença entre ter uma licenciatura e não ter qualquer nível de qualificação é abissal e, quanto menor é a qualificação, maior é a probabilidade de pobreza.
O que é que mais os distingue?
A relação com o trabalho. Nos reformados, o assunto está encerrado mas vimos o seu percurso e estavam envolvidos em trajetórias de emprego em carrossel: muitas atividades laborais, com desemprego pelo meio, atividades informais ou na zona intermédia entre emprego e desemprego, sem nunca saírem do lugar social, de serem pobres. Esta trajetória é muito acentuada nos precários, sobretudo nos mais novos. Nos desempregados, é acentuada, com a diferença que os períodos de desemprego são muito maiores do que entre os precários. Nos trabalhadores, é onde esta trajetória em carrossel é menos evidente, mas há muitos com contratos a prazo ou sem contrato. Podíamos imaginar que este tipo de trajetória só acontecia aos mais novos, mas não e, para as pessoas em situação de pobreza, tende a prolongar-se. A morte é omnipresente: sentem que são um sustento ou um peso para a família?
A morte surge claramente no perfil dos reformados, mas também noutros perfis, onde há relação com reformados. Estamos a falar na família-providência.
Em oposição ou em complemento ao Estado-providência?
Ficou muito claro no nosso trabalho que a família-providência não consegue substituir o Estado-providência. É um complemento e vai variando: dos idosos para os mais novos, que mesmo com reformas baixas apoiam os filhos e outros familiares; dos filhos para os pais, alguns deles emigrados. Terminaram as entrevistas em dezembro de 2019, agora, os resultado seriam muito diferentes? Não. Temos de ter cuidado para não deixar que a pandemia sequestre o debate sobre a pobreza em Portugal. É evidente que tem impacto: ao nível de aumentar o número de pessoas e a intensidade da pobreza. Agora, esses impactos reforçam as fraturas existentes na sociedade portuguesa. Muitas pessoas estavam um pouco acima do limiar de pobreza e qualquer incidente na vida num contexto pandémico, como o desemprego, as faz entrar rapidamente em situação de pobreza. A nível das características, não serão muito distintas dos pobres que analisámos, até porque muitos regressaram à situação de pobreza.