Porque é que o Brasil é o pior país do mundo na pandemia? Especialistas apontam o dedo a Bolsonaro
Médicos, infecciologistas e investigadores apontam uma razão: o governo de Bolsonaro, que será investigado politicamente em comissão parlamentar de inquérito no Senado Federal brasileiro por omissão no combate à doença.
No Brasil, o número de casos e de óbitos por covid-19 dispara. A média móvel aumenta. As vagas hospitalares apertam. O país é visto pela Organização Mundial de Saúde como celeiro de novas variantes. E a vacinação atrasa ou falha. De quem é a culpa? Depois de recusar comprar vacinas, além de as criticar, de promover tratamentos ineficazes e de rejeitar isolamento e máscaras, os especialistas apontam o dedo ao Presidente Jair Bolsonaro, cujo governo vai começar a responder politicamente pela tragédia em comissão parlamentar de inquérito (CPI) por omissão no combate à doença.
“Quando você vê as medidas adotadas pelo governo [...], é pouco provável que essa CPI não chegue a uma conclusão final de punir os culpados. Não é aceitável ter uma CPI e ninguém ser punido com esse número absurdo de mortes”, disse Dráuzio Varella, médico, cientista e escritor, em entrevista à televisão Globonews.
Sobre a culpa de Bolsonaro, perguntou “o que esperar de um Presidente que fez aglomerações de pessoas, tirou um ministro da Saúde [Luiz Henrique Mandetta], colocou outro que ficou um mês [Nelson Teich] e depois pôs um general [Eduardo Pazuello]?”. “Este entende de saúde tanto quanto eu entendo de bazucas. Um general que estava ali para obedecer às ordens dele. Ele [Bolsonaro] é que conduziu o combate à pandemia e é ele que continua conduzindo esse combate da pior forma. Para enfrentar o medo de contrair o vírus, repetiu à exaustão que não deveríamos acreditar nas ‘conversinhas’ dos jornalistas, que a doença só matava os ‘bundões’, que deixássemos de ser ‘maricas’ e que contávamos com a cloroquina, remédio milagroso”, concluiu.
O infecciologista Átila Iamarino, doutor em Microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP), com dois pós-doutoramentos sobre a disseminação dos vírus da própria USP e da Universidade Yale, nos EUA, escreveu no Twitter que “agora é a hora de reconhecer que 300 mil mortes [o número, entretanto, já ultrapassa os 355 mil] são o resultado planeado de negacionismo, promoção de aglomeração e desorganização nacional e que, se isso não mudar, não tem união e pensamento positivo que evitem as próximas 300 mil”. “O principal problema desta estratégia genocida é estarmos dando ao vírus a oportunidade de sofrer novas mutações, mais perigosas. Eventualmente, as vacinas podem deixar de ser eficazes – e, se esse cenário se concretizar, poderemos não ter mais solução. O Brasil criou a sua própria derrota. Estamos demorando para vacinar e deixando o vírus circular livremente”, completou, em entrevista à BBC News.
Entretanto, um estudo realizado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da USP e pela organização não-governamental Conectas Direitos Humanos descarta a tese da “incompetência” de Bolsonaro e aponta para que o Presidente promoveu a propagação do novo coronavírus no Brasil “com empenho e eficiência”. “Os resultados afastam a persistente interpretação de que ha
veria incompetência e negligência da parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade económica o mais rapidamente possível e a qualquer custo”, revelou o trabalho comandado pela jurista DeisyVentura.
Por outro lado, de acordo com o centro de debates do Lowy Institute, de Sidney, na Austrália, o Brasil (com 4,3 pontos) é o último classificado, de entre 98 países avaliados, no combate à pandemia – e os dados de cada país foram compilados ao longo de nove meses, até janeiro de 2021, ainda antes de a situação brasileira se agravar, a partir da confirmação do centésimo caso local da doença. A Nova Zelândia (com mais de 98) foi considerada o país com um combate mais eficaz.
Na opinião pública, a avaliação a Bolsonaro no combate à pandemia também atinge recordes negativos. Quando estavam contabilizados 280 mil mortos, uma sondagem do Instituto Datafolha de 16 de março indicava rejeição de 54% dos entrevistados à gestão do Presidente diante da doença, o valor mais alto desde o início da pandemia. No campo oposto, 22% consideravam “ótima ou boa” essa gestão, o registo mais baixo. Para 43% dos brasileiros ouvidos, Bolsonaro é o principal responsável pelos números trágicos – 17% apontaram o dedo aos governadores, 9% aos prefeitos e 6% ao comportamento da população.
“Relatório sacana”
Com este pano de fundo, Luiz Roberto Barroso, juiz do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o Senado abrisse uma CPI para investigar a ação – ou omissão – do governo no combate à doença, com base num pedido nesse sentido de 31 parlamentares (mais quatro do que o mínimo de 27 exigido), de 15 de janeiro. Na sequência, Bolsonaro atacou o juiz do STF. “Barroso, nós conhecemos o teu passado, a tua vida, o que você sempre defendeu, como chegou ao STF, inclusive defendendo o terrorista Cesare Battisti [criminoso italiano de extrema-esquerda refugiado no Brasil]. Então, use a sua caneta para boas ações em defesa da vida e do povo brasileiro, e não para fazer politicalha dentro do Senado Federal.”
O temor de Bolsonaro em relação à CPI foi exteriorizado novamente em conversa com o senador Jorge Kajuru, do Cidadania, gravada e divulgada por este. No telefonema, o Presidente sugeriu ao parlamentar aumentar o escopo da CPI para governadores e prefeitos. “Se não mudar o objetivo da CPI, ela vai vir para cima de mim. O que tem que fazer para ser uma CPI útil para o Brasil: mudar a amplitude dela. Bota Presidente da República, governadores e prefeitos”, encomendou Bolsonaro. Para, rematou, a CPI não produzir “um relatório sacana”. Na conversa, o Presidente diz ainda que “vai sair na porrada com o bosta do Randolfe Rodrigues”, referindo-se ao senador autor do requerimento da CPI.
Doria e a Coronavac
Ricardo Kertzman, colunista da revista Isto É, estranhou o comportamento do Presidente. “Raras vezes eu vi alguém tremer tanto [...] desde que Luís Roberto Barroso, atendendo a um pedido de alguns senadores, determinou a abertura de uma CPI para que se investigue possíveis omissões do governo federal no combate à pandemia de coronavírus e suas consequências nefastas. Acossado pela história e humilhado pela própria burrice, [Bolsonaro] demonstra cabalmente toda a sua incapacidade e despreparo para continuar na presidência do Brasil”, conclui.
O instituto da CPI é relevante na história da política brasileira – o impeachment de Collor de Mello partiu de uma. Para Celso Rocha de Barros, colunista do jornal Folha de S. Paulo, “a CPI tem que ser o início do julgamento de Nuremberga que o bolsonarismo merece”, porque “quem não trabalha para que Bolsonaro seja responsabilizado pelos seus crimes trabalha para matar 100, 200 mil brasileiros além dos que já morreram”.
O argumento de Bolsonaro e dos seus apoiantes é de que os maiores culpados do descalabro na pandemia são os governadores estaduais, uma vez que o governo federal lhes distribuiu verbas que eles não souberam gerir ou desviaram. A acusação gerou uma carta conjunta de 19 dos 27 governadores, incluindo aliados do governo, a falar de “má informação”.
Um dos atingidos, João Doria (PSDB), governador de São Paulo, tem a seu favor o argumento de que foi a vacina que ele comprou, e da qual o Presidente desdenhou, a Coronavac, que vacinou 80% dos brasileiros já imunizados.