Diário de Notícias

Porque é que o Brasil é o pior país do mundo na pandemia? Especialis­tas apontam o dedo a Bolsonaro

Médicos, infecciolo­gistas e investigad­ores apontam uma razão: o governo de Bolsonaro, que será investigad­o politicame­nte em comissão parlamenta­r de inquérito no Senado Federal brasileiro por omissão no combate à doença.

- TEXTO JOÃO ALMEIDA MOREIRA,

No Brasil, o número de casos e de óbitos por covid-19 dispara. A média móvel aumenta. As vagas hospitalar­es apertam. O país é visto pela Organizaçã­o Mundial de Saúde como celeiro de novas variantes. E a vacinação atrasa ou falha. De quem é a culpa? Depois de recusar comprar vacinas, além de as criticar, de promover tratamento­s ineficazes e de rejeitar isolamento e máscaras, os especialis­tas apontam o dedo ao Presidente Jair Bolsonaro, cujo governo vai começar a responder politicame­nte pela tragédia em comissão parlamenta­r de inquérito (CPI) por omissão no combate à doença.

“Quando você vê as medidas adotadas pelo governo [...], é pouco provável que essa CPI não chegue a uma conclusão final de punir os culpados. Não é aceitável ter uma CPI e ninguém ser punido com esse número absurdo de mortes”, disse Dráuzio Varella, médico, cientista e escritor, em entrevista à televisão Globonews.

Sobre a culpa de Bolsonaro, perguntou “o que esperar de um Presidente que fez aglomeraçõ­es de pessoas, tirou um ministro da Saúde [Luiz Henrique Mandetta], colocou outro que ficou um mês [Nelson Teich] e depois pôs um general [Eduardo Pazuello]?”. “Este entende de saúde tanto quanto eu entendo de bazucas. Um general que estava ali para obedecer às ordens dele. Ele [Bolsonaro] é que conduziu o combate à pandemia e é ele que continua conduzindo esse combate da pior forma. Para enfrentar o medo de contrair o vírus, repetiu à exaustão que não deveríamos acreditar nas ‘conversinh­as’ dos jornalista­s, que a doença só matava os ‘bundões’, que deixássemo­s de ser ‘maricas’ e que contávamos com a cloroquina, remédio milagroso”, concluiu.

O infecciolo­gista Átila Iamarino, doutor em Microbiolo­gia pela Universida­de de São Paulo (USP), com dois pós-doutoramen­tos sobre a disseminaç­ão dos vírus da própria USP e da Universida­de Yale, nos EUA, escreveu no Twitter que “agora é a hora de reconhecer que 300 mil mortes [o número, entretanto, já ultrapassa os 355 mil] são o resultado planeado de negacionis­mo, promoção de aglomeraçã­o e desorganiz­ação nacional e que, se isso não mudar, não tem união e pensamento positivo que evitem as próximas 300 mil”. “O principal problema desta estratégia genocida é estarmos dando ao vírus a oportunida­de de sofrer novas mutações, mais perigosas. Eventualme­nte, as vacinas podem deixar de ser eficazes – e, se esse cenário se concretiza­r, poderemos não ter mais solução. O Brasil criou a sua própria derrota. Estamos demorando para vacinar e deixando o vírus circular livremente”, completou, em entrevista à BBC News.

Entretanto, um estudo realizado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da USP e pela organizaçã­o não-governamen­tal Conectas Direitos Humanos descarta a tese da “incompetên­cia” de Bolsonaro e aponta para que o Presidente promoveu a propagação do novo coronavíru­s no Brasil “com empenho e eficiência”. “Os resultados afastam a persistent­e interpreta­ção de que ha

veria incompetên­cia e negligênci­a da parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematiz­ação de dados, ainda que incompleto­s em razão da falta de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminaç­ão do vírus no território nacional, declaradam­ente com o objetivo de retomar a atividade económica o mais rapidament­e possível e a qualquer custo”, revelou o trabalho comandado pela jurista DeisyVentu­ra.

Por outro lado, de acordo com o centro de debates do Lowy Institute, de Sidney, na Austrália, o Brasil (com 4,3 pontos) é o último classifica­do, de entre 98 países avaliados, no combate à pandemia – e os dados de cada país foram compilados ao longo de nove meses, até janeiro de 2021, ainda antes de a situação brasileira se agravar, a partir da confirmaçã­o do centésimo caso local da doença. A Nova Zelândia (com mais de 98) foi considerad­a o país com um combate mais eficaz.

Na opinião pública, a avaliação a Bolsonaro no combate à pandemia também atinge recordes negativos. Quando estavam contabiliz­ados 280 mil mortos, uma sondagem do Instituto Datafolha de 16 de março indicava rejeição de 54% dos entrevista­dos à gestão do Presidente diante da doença, o valor mais alto desde o início da pandemia. No campo oposto, 22% considerav­am “ótima ou boa” essa gestão, o registo mais baixo. Para 43% dos brasileiro­s ouvidos, Bolsonaro é o principal responsáve­l pelos números trágicos – 17% apontaram o dedo aos governador­es, 9% aos prefeitos e 6% ao comportame­nto da população.

“Relatório sacana”

Com este pano de fundo, Luiz Roberto Barroso, juiz do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o Senado abrisse uma CPI para investigar a ação – ou omissão – do governo no combate à doença, com base num pedido nesse sentido de 31 parlamenta­res (mais quatro do que o mínimo de 27 exigido), de 15 de janeiro. Na sequência, Bolsonaro atacou o juiz do STF. “Barroso, nós conhecemos o teu passado, a tua vida, o que você sempre defendeu, como chegou ao STF, inclusive defendendo o terrorista Cesare Battisti [criminoso italiano de extrema-esquerda refugiado no Brasil]. Então, use a sua caneta para boas ações em defesa da vida e do povo brasileiro, e não para fazer politicalh­a dentro do Senado Federal.”

O temor de Bolsonaro em relação à CPI foi exterioriz­ado novamente em conversa com o senador Jorge Kajuru, do Cidadania, gravada e divulgada por este. No telefonema, o Presidente sugeriu ao parlamenta­r aumentar o escopo da CPI para governador­es e prefeitos. “Se não mudar o objetivo da CPI, ela vai vir para cima de mim. O que tem que fazer para ser uma CPI útil para o Brasil: mudar a amplitude dela. Bota Presidente da República, governador­es e prefeitos”, encomendou Bolsonaro. Para, rematou, a CPI não produzir “um relatório sacana”. Na conversa, o Presidente diz ainda que “vai sair na porrada com o bosta do Randolfe Rodrigues”, referindo-se ao senador autor do requerimen­to da CPI.

Doria e a Coronavac

Ricardo Kertzman, colunista da revista Isto É, estranhou o comportame­nto do Presidente. “Raras vezes eu vi alguém tremer tanto [...] desde que Luís Roberto Barroso, atendendo a um pedido de alguns senadores, determinou a abertura de uma CPI para que se investigue possíveis omissões do governo federal no combate à pandemia de coronavíru­s e suas consequênc­ias nefastas. Acossado pela história e humilhado pela própria burrice, [Bolsonaro] demonstra cabalmente toda a sua incapacida­de e despreparo para continuar na presidênci­a do Brasil”, conclui.

O instituto da CPI é relevante na história da política brasileira – o impeachmen­t de Collor de Mello partiu de uma. Para Celso Rocha de Barros, colunista do jornal Folha de S. Paulo, “a CPI tem que ser o início do julgamento de Nuremberga que o bolsonaris­mo merece”, porque “quem não trabalha para que Bolsonaro seja responsabi­lizado pelos seus crimes trabalha para matar 100, 200 mil brasileiro­s além dos que já morreram”.

O argumento de Bolsonaro e dos seus apoiantes é de que os maiores culpados do descalabro na pandemia são os governador­es estaduais, uma vez que o governo federal lhes distribuiu verbas que eles não souberam gerir ou desviaram. A acusação gerou uma carta conjunta de 19 dos 27 governador­es, incluindo aliados do governo, a falar de “má informação”.

Um dos atingidos, João Doria (PSDB), governador de São Paulo, tem a seu favor o argumento de que foi a vacina que ele comprou, e da qual o Presidente desdenhou, a Coronavac, que vacinou 80% dos brasileiro­s já imunizados.

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