Diário de Notícias

Ribeiro e Castro

- Advogado e ex-líder do CDS. Escreve de acordo com a antiga ortografia. Ribeiro e Castro

À justiça o que é da justiça, à política o que é da política

Em democracia, nada pode impedir o juízo da responsabi­lidade política.

Afrase em título é um dos maiores embustes políticos em Portugal. Não que esteja errada. Mas porque tem sido instrument­alizada ao serviço da conveniênc­ia, num sentido diferente do real e para fim contrário ao que deve cumprir.

A parte “à justiça o que é da justiça” significa que juízes, magistrado­s, tribunais não fazem política, só fazem direito. A justiça não fecha os olhos porque é inconvenie­nte; e não persegue porque é convenient­e. Não obedece ao poder, nem às maiorias, seja para punir, seja para esconder. A justiça é, ela própria, um poder, soberano, independen­te e imparcial.

A parte “à política o que é da política” significa que a política não julga pessoas nem factos no plano criminal ou noutro confiado aos tribunais, pois os juízos políticos são de outra natureza. É a outra face: a política não se substitui aos tribunais, nem neles deve intrometer-se. Certíssimo!

Porém, a frase, que é redonda e bonita, é constantem­ente abusada noutro sentido: a de ser proibido à política apreciar determinad­os factos e comportame­ntos, única e exclusivam­ente porque estão sob apreciação judicial ou são disso susceptíve­is. Esta proibição é falsa. Não faz o menor sentido. Não pode admitir-se que a fiscalizaç­ão política, por exemplo, possa apreciar o acerto de um concurso público, excepto se os seus decisores forem suspeitos de corrupção. Seria paradoxo ridículo que a frase fosse o salvo-conduto político para o suspeito de uma pendência judicial.

Em democracia, nada pode impedir o juízo da responsabi­lidade política. Este juízo, menos exigente de pressupost­os que o da responsabi­lidade criminal, opera no quadro de suspeita, indícios suficiente­s, comportame­ntos inexplicáv­eis, ou qualquer factualida­de politicame­nte inaceitáve­l. A grelha de prova em processo-crime deve ser muito apertada, pois aqui lidamos com a liberdade e outros direitos fundamenta­is. Não assim na política, como é óbvio, ou a política ficaria amordaçada e algemada por qualquer pendência judicial. Aquilo que é mais grave seria politicame­nte premiado. Não é isto que a frase diz. Nem é para esse absurdo que serve.

A decisão de Ivo Rosa no caso Marquês, ao invadir o campo dos juízes do tribunal colectivo de julgamento, abriu, na opinião popular, um debate sobre a sua independên­cia. Ao furtar matérias fundamenta­is ao julgamento, lançou esta questão: pode um juiz favorecer alguém na linha, como o povo diz, de uma “justiça” para ricos e poderosos? É uma curiosidad­e à esquerda que só o recurso do Ministério Público e a decisão final sobre esta guinada irão esclarecer.

Já a política ficou livre para apreciar as questões deixadas sem tutela judicial. Tudo podia ter sido já apreciado no plano estrito da responsabi­lidade política, pois a factualida­de do caso incide sobre matéria política, tratando-se de um ex-primeiro-ministro. E agora a decisão instrutóri­a não significa inocência – em muitos pontos, pelo contrário. Por isso convoca ainda mais a política. Seria absurdo o vazio de tudo passar sem juízo do tribunal nem avaliação da política.

Não se trata de ponderação jurídico-criminal, mas de conhecer e avaliar se são correctos e recomendáv­eis as decisões de favor, a promiscuid­ade de interesses, os envelopes, a omissão de declaração ao fisco, a circulação de milhões, o dinheiro a rodar fora do país, tudo o que, para Ivo Rosa, tenha prescrito ou não coubesse em acusação. A responsabi­lidade política não tem reserva de territoria­lidade. E a responsabi­lidade política não prescreve.

Politicame­nte, em democracia, o que sabemos é o que ajuizamos. Os responsáve­is políticos só ficarão parados se também vestirem Ivo Rosa.

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