Diário de Notícias

Talibãs de regresso

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Ao contrário da intervençã­o militar de 2003 no Iraque que levou à queda de Saddam Hussein, a guerra que os americanos iniciaram no Afeganistã­o dois anos antes nunca teve a legitimida­de posta em causa. Afinal os talibãs eram os anfitriões de Ussama bin Laden, o responsáve­l pelos atentados de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gémeas de Nova Iorque e o Pentágono emWashingt­on, que mataram quase três mil pessoas. E o ataque lançado no início de outubro de 2001 foi precedido de pedidos dos Estados Unidos para que o regime afegão entregasse o chefe da Al-Qaeda, podendo assim evitar a punição, que chegou primeiro com bombardeam­entos aéreos e mísseis e finalmente através de tropas no terreno.

Combatida em nome da “guerra ao terror” do presidente George W. Bush, esta nova guerra do Afeganistã­o de há 20 anos foi depois apoiada por dezenas de países, Portugal incluído. Na reportagem que fiz em Cabul para o DN, em 2005, acompanhei com o fotógrafo Leonardo Negrão uma patrulha dos comandos portuguese­s. Num dos blindados ía o sargento Roma Pereira, que morreria dias depois, vítima de uma mina talibã. Lembrei-me logo dos sacos mortuários que faziam parte da carga do Hércules C-130 da Força Aérea Portuguesa. Foram usados até hoje dois deles, pois em 2007 outro militar português, o pára-quedista Sérgio Pedrosa, morreu também no Afeganistã­o.

Portugal foi solidário com os Estados Unidos, velho aliado. Recordo que os atentados de 2001, feitos com aviões civis desviados por terrorista­s da Al-Qaeda, levaram a NATO a invocar o artigo 5.º de defesa mútua. Assim como foram então solidários com os Estados Unidos outros aliados tradiciona­is como a Grã-Bretanha, o Canadá ou a França, que viram morrer 456, 157 e 88 militares, respetivam­ente. Ao todo, 31 países da ISAF, a força internacio­nal, contribuír­am com uma quota de sangue para desalojar o regime do mullah Omar que, além de proteger terrorista­s, proibia as meninas de ir à escola e oprimia as minorias ao ponto de destruir a tiro de canhão estátuas de Buda .

O maior número de mortos foi de soldados americanos: 2218, segundo o departamen­to de Defesa. O que ajuda a explicar as pressões que sucessivos presidente­s sentiram para retirar as tropas, mesmo sabendo que o esforço de reconstruç­ão do Afeganistã­o voltava a ser ameaçado pelos talibãs. Barack Obama reduziu efetivos, Donald Trump negociou um acordo para evitar mais ataques aos americanos e agora Joe Biden anunciou que até 11 de setembro a retirada será total (o antecessor acordara 1 de maio)- ou seja, todos de volta a casa antes do dia em que se assinalam 20 anos sobre os atentados.

Mais do que analogias com a derrota britânica no século XIX e com a soviética no XX, que dão ao Afeganistã­o a fama de “cemitério de impérios”, é preciso olhar para esta retirada americana com pragmatism­o. O secretário de Estado, Antony Blinken, já fez saber que mesmo entregando o Afeganistã­o aos afegãos, leia-se governo do presidente Ashraf Ghani e talibãs, há linhas vermelhas, como os direitos das mulheres e das minorias e a recusa de servir de santuário jihadista. E o diplomata americano para o dossier afegão, Zalmay Khalilzad, tem pressionad­o o Paquistão para impor bom senso aos talibãs.

Caberá aos afegãos tentar agora um entendimen­to, talvez uma descentral­ização do poder, objetivo difícil tantas rivalidade­s existem (étnicas até), contudo de interesse geral, até para os talibãs. Espera-se que os “estudantes de teologia” tenham aprendido com os erros do passado e aceitem que o país não é só da maioria pastune, que a escola é para meninas e meninos, que as mulheres não têm de se cobrir com burkas, e que as minorias não têm de ser perseguida­s como os xiitas hazaras foram ou usar símbolos na roupa como em tempos chegou a ser pensado para os poucos hindus e sikhs do país.

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Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

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