Pedro Tadeu
Ivo Rosa é um juiz admirável?
Como é que, olhando para os mesmos factos e para as mesmas provas, é possível dois juízes decidirem de forma totalmente oposta? Esta é uma das perguntas que mais ouvi nas reações excitadas à decisão instrutória de Ivo Rosa no processo Sócrates.
Em março do ano passado, António Joaquim foi absolvido do crime de homicídio por um tribunal de Loures, que tinha três juízes e quatro cidadãos jurados. A amante, Rosa Grilo, foi condenada pelos mesmos três juízes e pelos mesmos quatro jurados a 25 anos de cadeia pelo assassinato do marido, Luís Grilo.
Em setembro, seis meses depois, dois juízes do Tribunal da Relação decidiram a favor de um recurso do Ministério Público e deram como provado que António Joaquim foi cúmplice de Rosa Grilo no crime e condenou-o a 24 anos de prisão por isso. Como havia outros crimes menores associados a este, que davam mais algum tempo de cadeia, a pena total foi fixada em 25 anos.
No mês passado mais dois juízes do Supremo Tribunal de Justiça confirmaram a pena de cadeia a António Joaquim.
Não correu nenhum abaixo-assinado a pedir que os três juízes do tribunal de Loures fossem afastados da magistratura, mas corre um para desempregar Ivo Rosa.
É completamente banal os tribunais alterarem radicalmente decisões uns dos outros – acontece, literalmente, todos os dias. É o que vai acontecer, certamente, com algumas ou mesmo com todas as decisões de Ivo Rosa – e tal aconteceria, também certamente, se ele tivesse decidido exatamente ao contrário do que decidiu.
É esta diversidade de análise que permite à sociedade ter um sistema jurídico que acerta mais vezes do que falha – isto é até mais valioso do que ter qualidade nas provas levadas a juízo, pois estas são sempre sujeitas a várias interpretações, mesmo as puramente técnicas.
Também não é verdade, ao contrário do que vi repetidamente dito, serem invulgares as expressões usadas por Ivo Rosa para criticar a acusação do Ministério Público: dizer que uma acusação é “fantasiosa” ou “pouco rigorosa”, as palavras de Ivo Rosa consideradas mais polémicas, é mesmo a fraseologia mais banal desta terra jurídica, como se pode comprovar facilmente se consultarmos os sites onde estão disponíveis sentenças de tribunais.
Pessoalmente também acho que há muitas coisas que Ivo Rosa disse e escreveu que não fazem sentido algum. Por exemplo, achar que um primeiro-ministro, se quiser, não influencia decisões de um órgão colegial de administração de um banco público é mesmo incrível. Provavelmente, pelo que leio de alguns juristas, as interpretações sobre prazos de prescrição ou de aplicação da lei fiscal estarão totalmente erradas. Mas também acho que ele tem muita razão em muitas das críticas que faz ao Ministério Público e que o resultado do trabalho dos procuradores, depois de tanto tempo, é evidentemente fraco – mesmo assim Sócrates, dado como corrupto por Ivo Rosa, vai a tribunal e em condições de poder ser condenado a penas elevadas, o que parece que pouca gente percebeu.
O meu ponto é outro: pense o que eu pensar sobre a decisão de Ivo Rosa, a minha opinião não pode interessar aos tribunais. Interessará aos meus leitores, mas não pode influenciar a decisão de um juiz, seja qual for a instância em que ele esteja.
A opinião dos doutos comentadores Marques Mendes, Paulo Portas, Miguel Sousa Tavares, Ana Gomes, José Miguel Júdice e de toda a longa primeira divisão desse campeonato do comentário, tal como as análises dos jornalistas mais populares, interessarão certamente aos telespectadores, mas não podem ser relevantes para os tribunais.
A influência destes comentários e análises é obviamente útil, porque ajuda a sociedade a decidir eventuais mudanças que possam corrigir erros estruturais do sistema judicial – nomeadamente para diminuir o horrível tempo de execução da justiça e o número de erros processuais –, mas não podem servir para linchar um juiz porque, isso sim, mata a justiça.
Ivo Rosa até pode ser um idiota, mas foi um idiota que decidiu pela sua cabeça, independente e livre, imune a todas as pressões que pediam, logo ali na instrução, a cabeça de Sócrates servida numa bandeja. Essa coragem, absolutamente notável nestes tempos em que todos têm medo de todos, merece a minha admiração mais profunda e é uma coragem necessária para que a justiça funcione.
Espero que quem vá analisar os recursos às suas decisões, mesmo que decida anular tudo o que Ivo Rosa decidiu – que pode ser o que juridicamente deva ser feito, não sei –, o faça com o mesmo espírito independente e livre que ele teve, e não por ter medo de levar com um abaixo-assinado ou por não querer ouvir insultos na televisão.