Biden abre porta aos talibãs com anúncio de retirada total do Afeganistão
Presidente dos EUA mantém acordo de Trump com os talibãs, adiando apenas a data de saída para setembro, para garantir coordenação com aliados. Peritos afegãos pessimistas.
Primeiro foi um alto funcionário da administração; depois o secretário de Estado Antony Blinken; seguiu-se a Casa Branca, que antecipou parte do discurso do presidente Joe Biden, e este, por fim, disse o que todos já sabiam: os Estados Unidos e os aliados vão retirar todas as tropas até 11 de setembro, porque é chegado “o tempo para acabar a guerra mais longa dos EUA”. Uma decisão na linha do que o presidente anterior, Donald Trump, havia acordado com os talibãs em 2020, embora com um adiamento de quatro meses. A saída das forças militares põe em xeque o frágil regime de Cabul, que foi mantido fora das negociações perante os talibãs, os quais num dia dizem que não vão manter conversações com o governo afegão e no outro o seu contrário.
“As razões para nos mantermos no Afeganistão são cada vez menos claras”, justificou Joe Biden numa mensagem dirigida aos norte-americanos, depois de ter dito que os objetivos da missão estavam cumpridos, ou seja, o fim de Osama bin Laden e a redução da sua rede terrorista à expressão mínima. “Não podemos continuar o ciclo e esperar um resultado diferente”, continuou, tendo lembrado que nem quando estiveram 98 mil soldados se conseguiu impor uma solução militar. “Insistem sempre que agora não é a melhor altura para sair. Quando será o momento certo para sair? Daqui a um ano, dois, dez? Quando gastarmos mais um bilião de dólares?”. Biden disse que não faz sentido manter soldados para combater o terrorismo num só país quando essa ameaça existe noutros, e que é altura de os EUA se concentrarem nas ameaças de hoje, que estão noutros lados, mas também na competição da China, nas ameaças ciberterroristas, na pandemia atual e em futuras pandemias.
Biden, que em 2009 tentou sem sucesso demover Obama de duplicar as forças naquele país asiático, lembrou que desde há 12 anos tem sempre consigo um papel com o número atualizado de baixas no Iraque e Afeganistão, tendo dito que neste último é de 2488. (Entre 2010 e 2020 morreram 100 mil civis, segundo a ONU).
O processo de retirada das tropas terá início no dia 1 de maio e será realizado em coordenação com os aliados da NATO com um plano de retirada ordenada, no que é a principal diferença em relação ao plano de Trump. A data de 11 de setembro é definitiva e não prevê o destacamento de uma pequena força antiterrorista, uma opção encarada pela Casa Branca como uma salvaguarda contra um ressurgimento da Al-Qaeda ou ameaças semelhantes. Biden tinha estado a considerar essa opção até fevereiro, mas concluiu que sempre que os Estados Unidos fazem as suas movimentações no Afeganistão depender de condições no terreno, essas condições resultam em permanecer envolvidos. “Isto não é baseado em condições. O presidente considerou que uma abordagem baseada em condições, que tem sido a abordagem das últimas duas décadas, é uma receita para permanecer no Afeganistão para sempre”, disse um alto funcionário sob anonimato aos jornalistas.
Já se sabia que Joe Biden queria pôr um ponto final numa intervenção militar de que sempre foi crítico, e também que, fosse qual fosse a decisão, iria ser confrontado com críticas, a começar pelo Partido Republicano. O líder da minoria republicana no Senado, Mitch McConnell, disse que é “um erro grave” e que os “terroristas estrangeiros não vão deixar os EUA em paz só porque os políticos se cansaram de enfrentá-los”, enquanto o senador Lindsey Graham chamou ao plano de retirada “um desastre em construção” e “diabolicamente perigoso”, porque “o presidente Biden terá, no essencial, cancelado uma apólice de seguro contra outro 11 de Setembro”.
John Hannah, que foi conselheiro de segurança do vice-presidente Dick Cheney, num texto publicado na Foreign Policy apontou o dedo ao secretário de Estado por este ter escrito uma carta “desonesta e ameaçadora” ao presidente afegão Ashraf Ghani. A mensagem de Blinken, “para todos os efeitos, culpou o parceiro afegão de Washington pelo fracasso no progresso das conversações de paz com os talibãs”, sendo que, critica Hannah, em parte alguma Blinken mencionou que os talibãs “rejeitaram consistentemente qualquer forma de acordos de partilha de poder com o governo afegão, insistindo em vez
“As consequências da decisão de Biden garantem o regresso dos talibãs, mas não sem antes provocar o colapso do Estado, uma guerra civil e a destruição da democracia.”
disso que o único resultado político aceitável é a restauração total do emirado islamista pré-2001”. E acusa Blinken de omitir o facto de os talibãs “terem explorado as negociações com os EUA para aumentar drasticamente os ataques às forças de segurança afegãs e tomar o controlo de mais território”.
“As consequências da decisão de Biden de sair do Afeganistão garantem o regresso dos talibãs, mas não sem antes provocar o colapso do Estado, uma guerra civil multidimensional, e a destruição da democracia”, disse à AFP o analista afegão Nishank Motwani. Antes do pior cenário se concretizar, a Turquia poderá ser o cenário para conversações entre talibãs e o governo de Cabul, caso os fundamentalistas aceitem o convite. Em cima da mesa estará um governo que junte os inimigos. “Se a cimeira falhar, e os talibãs continuarem a rejeitar a paz, receio que o Afeganistão possa enfrentar uma guerra civil total”, comentou à Deutsche Welle o afegão Mohammad Shafiq Hamdam, perito em segurança.