Pedro Marques
Dr. Jekyll e Mr. Hyde
Ojulgamento ainda nem começou e o sistema judicial já conseguiu dar uma péssima imagem de si mesmo. Crimes prescritos. Uma acusação “pouco rigorosa”, “inconsistente” e “fantasiosa”. Dois juízes, os únicos do mais importante tribunal criminal do país, com visões diametralmente opostas da aplicação da lei. Se o Tribunal Central de Instrução Criminal fosse uma pessoa, teria a personalidade de Dr. Jekyll e Mr. Hyde.
As pessoas não compreendem. A justiça é independente, mas não está nem se pode colocar à margem da sociedade. Constitui um dos vértices do sistema democrático e, tal como os restantes, requer legitimidade social. Não está isenta de escrutínio. Tem de conseguir explicar o seu funcionamento e decisões aos cidadãos.
E tem de funcionar em tempo útil. De acordo com as notícias, as investigações terão começado há nove anos. Nove anos!
Entre julgamento e recursos, talvez tenhamos ainda mais uma década até à sentença definitiva. Não há justiça que se faça ao fim de duas décadas.
Uma das causas desta demora reside na opção por criar um megaprocesso, em vez de vários processos separados. É a lógica de relacionar tudo com tudo, o que pode fazer sentido em teoria (e mesmo isso é discutível), mas que a prática demonstra criar monstros processuais – atrasando investigação, instrução e julgamento – e contribui para que não se faça justiça.
É exatamente por isso que a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, proposta pelo governo no ano passado, insiste na separação de processos. Apesar de a separação de processos ser já uma opção do Ministério Público, tudo o que na lei possa ser clarificado para simplificar esse caminho será positivo.
Mas há uma coisa para a qual os megaprocessos servem: a mediatização. No momento em que vimos, qual reality show, a detenção de José Sócrates em direto na televisão, percebemos que as violações do segredo de justiça (crimes que ficam sempre impunes) seriam utilizadas cirurgicamente para fazer o julgamento na praça pública.
Depois de tudo isto, da decisão instrutória sobram apenas 17 dos 189 crimes que constavam na acusação. São, ainda assim, acusações muito graves as que sobrevivem ao profundo escrutínio de Ivo Rosa e seguem para julgamento. Ninguém sai, por isso, vitorioso desta fase processual.
É verdade que mesmo Al Capone foi “apenas” preso por fuga ao fisco. O mesmo aconteceu, aliás, com Isaltino Morais, por prescrição do crime de corrupção pelo qual foi condenado. Mas fica nos cidadãos uma total incompreensão. Um sentimento larvar que corrói a confiança na justiça e na democracia.
Sabemos onde está a ferida. Os atores do sistema judicial que tratem de a curar antes que alastre ainda mais.