José Crespo de Carvalho
É fartar, vilanagem
O civismo faz parte da educação. E nós estamos a precisar de civismo como de pão para a boca. E como em quase tudo na vida o civismo não se impõe. Mostra-se, exemplifica-se, explica-se e atua-se para o conseguir.
Se é certo que estamos em fase de cumprir um plano de desconfinamento que, já de si, e apesar da abertura proposta, não é senão mais um atentado às liberdades individuais (já todos o sabemos), temos, por outro lado, aquilo que dentro de determinadas regras pode ser exequível. E estamos perante uma troca vital a fazer: o “fartai vilanagem” contra o “bom senso”. O “tudo nos é permitido” contra o “bom senso”. O “vamos dar cabo disto tudo de uma vez” contra o “vamos devagarinho”, passo por passo, retomar o que nos pertence e as liberdades que têm ficado esquecidas.
Sim, porque se trata agora, muito mais, de uma coisa que temos ou que não temos. Não há meio bom senso. Ou há bom senso. Ou não há bom senso. E costuma dizer-se que não está bem distribuído. O que preferimos? Algum comedimento no desconfinamento, algumas regras (e não vou martelar aqui na sua legalidade), alguma distância e cuidados higiénicos associados ou, sem apelo nem agravo, voltar para casa?
Algum distanciamento, alguma prudência, algum civismo, vão dar-nos acesso a esplanadas, a restauração, a hotelaria, a deslocações, a aulas presenciais, a eventuais férias. Uma certa normalização das coisas sem esquecer que até chegarmos à imunidade de grupo temos ainda um caminho longo a percorrer.
Ao contrário, se mal nos dizem para sair paramos na primeira esplanada que existe e aceitamos uma fila de 30 pessoas porque não vemos esplanadas há uns tempos, e se nessa fila se discutem passagens à frente, mesas que estariam primeiro para nós que para outros, onde se vê claramente que há pressão para que a fila ande (e ela não anda só porque sim, não anda com proximidade), onde se percebe que o distanciamento não é cumprido, onde se acha que o acesso à esplanada, às compras de roupa, à entrada em massa nas lojas, entre tantos outros, são um dos muitos direitos fundamentais perdidos e tudo se esquece, sem mais, então vamos voltar para casa.
Precisamos que vários setores da economia reabram cautelosamente. Precisamos de aceitar de novo o turismo. Precisamos de trabalho e de condições para que uma boa parte das empresas progridam. E precisamos disto tudo e do bom senso e da inteligência como variáveis de base. Porque precisamos de recuperar o produto interno perdido, porque precisamos de mais e melhor economia.
E se não tivermos bom senso e inteligência a malta toda que em horda se coloca em filas intermináveis e pressiona tudo e esquece as regras mais simples de afastamento e higienização irá sofrer com a falta de trabalho, irá sofrer na mudança de trabalho, irá sofrer nos rendimentos, irá sofrer naquilo que tanto preza aparentemente: as liberdades. E irá sofrer para casa.
Ah, mas estamos todos fartos disto! Sério? Sério mesmo? E todos os que se comportam com algum comedimento não estão fartos disto? O comedimento, o bom senso, alguma inteligência, são ingredientes essenciais para vencer isto.
Devíamos ter um propósito de ação com bom senso e que se traduz, em vez de escrever no jornal (e contra mim falo) ou fazer posts indignados, intervir mesmo a cada ocasião em que encontramos situações reais destas: filas, aglomerados, pessoas sem máscara. O civismo faz parte da educação. E nós estamos a precisar de civismo como de pão para a boca. E como em quase tudo na vida o civismo não se impõe. Mostra-se, exemplifica-se, explica-se e atua-se para o conseguir. Estamos, pois, todos convocados a intervir. É isso ou vamos todos, sozinhos, novamente para casa.