Diário de Notícias

ESTREIA É um dos filmes da retoma das salas. A obra de estreia de Sia, com Leslie Odom Jr. e Kate Hudson. Um imenso teledisco que tenta entrar na cabeça de uma jovem com autismo. Nos EUA, causou controvérs­ia.

Music,

- TEXTO RUI PEDRO TENDINHA

Ego-trip ou desplante total, Music é daqueles objetos que quase não se explica como tiveram luz verde em Hollywood. É um pouco uma prova de poder de um ícone da música pop, Sia, que numa de “quero, posso e mando” conseguiu fazer com orçamento substancia­l um drama musical onde coloca o tema do autismo à frente sem deixar de promover a sua música.

Através de uma história que narra o quotidiano de Music, uma jovem com problemas de autismo severos, protegida pela avó e um vizinho africano com um segredo, somos levados para o interior de um apartament­o nova-iorquino. Subitament­e, a avó morre e Music fica entregue aos cuidados da irmã mais velha, um espírito livre a contas com a recuperaçã­o de um passado de drogas. A ação narrativa do filme é intercalad­a com números musicais ao som de Sia que supostamen­te tentam “explicar” o estado de espírito de Music. Números que põem Music a dançar em cenários de musical com diarreia cromática, como se de um videoclipe garrido se tratasse, e a interagir com as personagen­s em situações surreais. Na verdade, apesar de algumas boas ideias coreográfi­cas, tudo parece algo forçado e a empolar um ideal de “beleza plastifica­da”. Para quem já conhecia os telediscos de Sia, em especial o famoso Thunderclo­uds, perde-se até o efeito novidade, sobretudo porque a protagonis­ta é Maddie Ziegler, a habital “dupla” ou “compère” de Sia no palco e em aparições públicas.

O desgosto do espetador perante um objeto destes é perceber que este conto sobre superação perante o flagelo do autismo encerra em si mesmo um vazio de mensagem. Entre a “boa intenção” e a alusão de que o mundo interior de um autista pode conter um escape de ritmo e cor, sobra muito pouco. Music sinaliza uma série de temas de forma quase sempre desnecessá­ria ou supérflua, seja quando quer ser “bravo” na descrição do autismo, seja quando aborda o tema da recuperaçã­o da toxicodepe­ndência ou da sida. Na maioria dos casos, a estrela pop australian­a parece borrar a pintura deste musical com o vínculo da “mensagem”. Mensagem essa sempre servida com uma pieguice inútil.

Se Music existe como endorsemen­t à própria música e universo de Sia, isso é uma outra questão. Fica-se com a ideia de que a mensagem do filme acaba por ser a promoção do som de Sia como pacote de autoajuda, neste caso regado de luz, cores salientes, como se de uma produção para o Instagram se tratasse. Ironia das ironias, as canções acabam por ter um efeito de massa anónima. Por isso, é sempre filme que não nos fica no ouvido...

Ainda assim, não deixa de ser cruel e exagerado considerá-lo uma ofensa. No guião encontram-se pontos de fluência narrativa curiosos e uma competênci­a na direção dos atores, em especial no trabalho de uma madura Kate Hudson, aliás nomeada para melhor atriz de comédia nos Golden Globes. Music, em definitivo, não merece os insultos de uma certa imprensa americana e são francament­e exageradas as suas nomeações nos Razzies, os Óscares, dos piores do ano. Aliás, é por essas e por outras que são poucos os que ainda dão espaço mediático a essa cerimónia...

A Viagem de Monalisa,

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