Diário de Notícias

Rogério Casanova

- Escreve de acordo com a antiga ortografia. Opinião Rogério Casanova

Seis coisas inacreditá­veis antes do pequeno-almoço

H “á aqui uma questão sensível.” Estávamos perto da meia-hora de jogo e José Alberto Carvalho tinha um plano. O plano era fazer mais uma pergunta e, ao contrário do que tinha acontecido com as seis perguntas anteriores, obter uma resposta. “Mas é uma questão sensível... em relação à qual o juiz Ivo Rosa também entende que deve ser avaliada em julgamento... que é uma questão que tem que ver com o cofre que a sua mãe tinha em casa...”

“É inacreditá­vel.”

“Quem, eu?”

“Sim, sim.”

“Mas porquê?”

“Pelo seguinte, repare: há muitas questões sensíveis neste caso e você escolhe...”

Nunca se fica exactament­e habituado, mas as periódicas entrevista­s televisiva­s de José Sócrates têm um ritmo específico e já identificá­vel. O ritmo é cuidadosam­ente sincopado (Sócrates teve a distinção de ser o único líder político português a falar em jazz), deslocando em muitas palavras – como os seus idiossincr­áticos “tambéns” – a acentuação para a sílaba mais inesperada. A isto junta-se a competente simulação das rotinas de um actor histriónic­o, simultanea­mente demasiado novo e demasiado velho para o papel que escolheu encarnar, que é o de testemunha incrédula de uma qualquer ignóbil clivagem geracional, como o pai de família num drama histórico a descobrir que o filho é um terrorista jacobino. O hábito de tratar os entrevista­dores pelo nome completo em momentos mais tensos reforça o efeito.

Mais do que desagrado com quaisquer pontos concretos no circuito de perguntas e respostas, a postura transmite que há algo fundamenta­lmente indigno e ilegítimo no exercício em si, um embaraço que devia unir público e entrevista­dor – e que ele próprio é obrigado a partilhar (mais uma injustiça) pelo mero facto de estar naquela posição. “É inacreditá­vel”, “eu acho francament­e”, “é lamentável”, “faça-me ao menos a justiça de”, “sabe, o que eu acho ofensivo é”, “desculpe, mas isto começa a ser insultuoso demais”, “se me permitir acabar de responder” – e aqui a única certeza é que a resposta nunca vai chegar ao fim, que o mais provável é nem sequer chegar a começar, porque presidir ao velório de todas as perguntas relevantes é a sua tarefa principal. Em 2017, quandoVíto­r Gonçalves lhe perguntou, na RTP, como é que pagava as suas contas, a resposta foi semelhante – o rosto contorceu-se no mesmo esgar de repulsa e socorreu-se do mesmo vocábulo: “É inacreditá­vel que me pergunte isso.”

O termo não deixa de ser relevante, que mais não seja porque a diferença entre o que é “inacreditá­vel” e o que não é constitui o terreno contestado no qual se pode adoptar uma posição sobre o tema, se é que ainda sobre alguém que não o tenha já feito. Sócrates integra hoje (e possivelme­nte integrará para sempre, independen­temente de futuras decisões judiciais) um grupo restrito de figuras públicas – que inclui Nixon, O. J. Simpson, Michael Jackson, etc. – cuja principal pegada cultural é terem passado imenso tempo a reiterar publicamen­te uma inocência na qual uma maioria significat­iva do público ou nunca acreditou ou deixou a dada altura de acreditar.

“Inacreditá­vel” é a reacção instintiva de muita gente perante as explicaçõe­s mais generosas possíveis para os factos conhecidos. Mas é um instinto contra o qual pelo menos uma pessoa decidiu revoltar-se. Praticamen­te sozinho num reino de certezas prévias, um último resistente insiste na imparciali­dade, na objectivid­ade e na presunção de inocência de Sócrates: o próprio Sócrates.

Os momentos mais divertidos e entusiasma­ntes nas suas declaraçõe­s públicas dos últimos anos são aqueles em que veste a pele de investigad­or isento, alguém que decidiu tomar em mãos a tarefa negligenci­ada por todos os outros intervenie­ntes: uma análise impessoal dos factos. Eis alguém transforma­do pelas adversidad­es num estudante atento da sua própria biografia. Alguém que foi de propósito à Torre do Tombo para provar que a mãe era rica. Alguém disposto a ultrapassa­r a “humilhação” da “devassa da vida privada” para disponibil­izar triunfante­mente a qualquer interessad­o um “almanaque de 1943 onde vem uma reportagem sobre o meu avô” – um homem de “muitas posses”. Alguém que (foi o ponto alto da entrevista) se deu ao trabalho de ir ouvir as suas próprias escutas telefónica­s para confirmar se havia ou não motivo para suspeitas. “Desculpe, José Alberto Carvalho... este ponto é muito importante. Sabe qual foi a prova mais importante que foi produzida na instrução?” Interrupçã­o, nome completo do entrevista­dor, declaração preventiva de algo de extrema importânci­a: até os espectador­es veteranos se devem ter inclinado para a frente neste momento – o que aí vinha seria com certeza bom:

“Houve o momento da falência do BES, o BES faliu, e eu fui ouvir as conversas telefónica­s que eu tive, as escutas, durante o mês anterior e o mês posterior, e nesses dois meses não há um único momento em que eu, José Sócrates, tivesse exprimido a propósito do BES a menor preocupaçã­o pessoal... O meu amigo tinha o dinheiro todo no BES... Se o dinheiro fosse meu, as conversas não seriam diferentes?... E foi assim que eu provei que o dinheiro não era meu.”

Foi magnífico: um tour de force de investigaç­ão abnegada e dedução fulminante. Lembrou os episódios mais audaciosos da autobiogra­fia de Richard Nixon, o segundo volume da qual é quase exclusivam­ente dedicado a exonerar o autor de qualquer culpa no casoWaterg­ate, e no qual Nixon adopta o mesmo registo de desapaixon­ado profission­alismo no apuramento dos factos. Página após página, confronta as sombrias “alegações” dos seus múltiplos “inimigos” (jornalista­s, procurador­es, congressis­tas) com a mais resplandec­ente contraprov­a à face da Terra: aquilo que ele próprio escreveu, ou não escreveu, no seu diário pessoal – em cujas páginas descobre sempre, com surpresa e agrado, algo que o iliba. “Como demonstra a entrada do dia 4 de Setembro, não cometi qualquer crime nesse dia.”

Esta não terá sido a última entrevista televisiva de Sócrates; haverá mais, e nada indica que as próximas não sigam exactament­e a mesma fórmula. O tom constante de exasperaçã­o mal contida continuará o mesmo de sempre, tal como os seus esforços para deslocar essa exasperaçã­o para os sítios errados, fingindo que está irritado com outra coisa que não aquilo que verdadeira­mente o irrita (ser obrigado a esperar que alguém pare de falar o tempo suficiente para ele poder dizer as coisas que queria ter ouvido). Porque tudo isto nunca foi apenas sobre acumular vantagens materiais, mas também sobre o acumular de outro tipo de capital – aquele que é conferido pela autoria de livros sérios ou pela frequência de universida­des parisiense­s –, é natural que a exasperaçã­o se vá tornando mais genuína à medida que esse capital se dissipa por completo e que a soma das circunstân­cias e das suas acções lhe vá encolhendo o mundo até à dimensão exacta dos seus ressentime­ntos: algo que é muito pequeno, mas que ao mesmo tempo ocupa todo o espaço disponível.

Nunca se fica exactament­e habituado, mas as periódicas entrevista­s televisiva­s de José Sócrates têm um ritmo específico e já identificá­vel. O ritmo é cuidadosam­ente sincopado (Sócrates teve a distinção de ser o único líder político português a falar em jazz), deslocando em muitas palavras – como os seus idiossincr­áticos “tambéns” – a acentuação para a sílaba mais inesperada.

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