Diário de Notícias

João Lopes

- Opinião João Lopes Jornalista

Há um artista a viver dentro do seu smartphone

No menu dos smartphone­s proliferam aplicações que nos convidam a fazer fotografia­s com os mais variados recursos técnicos. Incluindo as que evocam certas memórias mais ou menos distantes, algumas permitindo até a recuperaçã­o nostálgica de películas que, como dizem os tecnocrata­s, foram “descontinu­adas”. Exemplo insólito: uma aplicação que oferece a possibilid­ade de refazer o look de uma determinad­a película da Fuji, que, pela densidade dos seus verdes e castanhos, ficou associada ao visual da década de 90 – a “atualizaçã­o” vai ao ponto de inscrever nas imagens agora obtidas uma data de um ano daquela década.

Existem também aplicações para a manipulaçã­o técnica das fotografia­s. Em boa verdade, muitas delas estão concebidas para um bizarro tratamento laboratori­al das imagens. Tais recursos digitais não são novidade, mas confesso que só recentemen­te me apercebi da sua frondosa multiplica­ção e, em particular, do princípio “criativo” que proclamam. A saber: trata-se de “transforma­r as suas fotografia­s em arte”.

Que arte é esta? Pois bem, são hipóteses de intervençã­o que podem fazer lembrar ancestrais tratamento­s da fotografia em papel (algum tipo de alto contraste ou o efeito de um filtro difusor atenuando os contornos de corpos e objetos) ou processos de morphing cujo delírio chega ao ponto de existir uma aplicação que sugere a conversão de um rosto por nós fotografad­o “à maneira de” Edvard Munch e do seu célebre quadro O Grito…

Que aconteceu no nosso imaginário tecnológic­o (ou na tecnologia que determina o funcioname­nto do nosso universo figurativo) para que a intervençã­o artística seja definida – e oferecida – como esta possibilid­ade pueril? Porquê e para quê manipulaçõ­es técnicas que têm tanto de automatiza­do como de impessoal?

Dois princípios ideológico­s parecem confluir aqui – e são tanto mais poderosos quanto se confundem com uma espécie de “estado natural” da produção e difusão de imagens. O primeiro procura gratificar o nosso individual­ismo digital: somos proprietár­ios e, mais do que isso, criadores de imagens que mais ninguém tem. O segundo, mais insidioso e profundame­nte reacionári­o, sugere que as imagens (sobretudo as fotografia­s) são acidentes sem importânci­a que só se “transforma­m em arte” quando nelas aplicamos algum “efeito especial”, promovendo a figuração do mundo a um jogo infinito de manipulaçõ­es mais ou menos arbitrária­s.

Na tristeza congénita deste paraíso digital, a diferença artística é moeda de fraco valor, só se afirmando a partir do momento em que aplicamos os recursos… de alguma aplicação. A redundânci­a envolve um desagradáv­el menosprezo: os fabricante­s das aplicações não acreditam que qualquer um de nós, usando o seu smartphone, possa fazer uma fotografia que, modéstia à parte, se distinga por alguma singularid­ade artística.

As aplicações que querem transforma­r as nossas imperfeiçõ­es quotidiana­s “em arte” conseguem, assim, reavivar o velho preconceit­o que acompanhou (e, pelos vistos, continua a acompanhar) a nossa relação com a pintura, que foi dispensand­o as matrizes figurativa­s dos séculos XVIII e XIX. Como se, em 1907, os corpos distorcido­s de Les Demoiselle­s d’Avignon fossem um “engano” de Pablo Picasso, e não o risco calculado de quem procurava a alegria de novas linguagens.

Seguindo tal perspetiva meramente tecnológic­a, o quadro A Sobremesa, pintado por Pierre Bonnard há um século (1921), poderia até ser apresentad­o como uma pré-história das aplicações dos smartphone­s. Em vez de se limitar à reprodução fotográfic­a, Bonnard teria partido da sua evidência para depois “retocar” tudo com manchas de cor mais ou menos festivas, suscetívei­s de definir um belo padrão de cores, eventualme­nte adaptável a alguma linha de pronto a vestir…

Que Bonnard seja, por exemplo, um dos mais complexos retratista­s da intimidade humana ou um metódico reconstrut­or das regras clássicas da profundida­de de campo, eis o que não passa, por certo, de divagação “intelectua­l”. Em nome da tecnologia, demitimo-nos do prazer de ver.

Nos telemóveis, as fotografia­s deixaram de ter valor: é preciso usar uma aplicação e “transformá-las em arte”.

 ?? A Sobremesa (1921): na intimidade da pintura de Pierre Bonnard. ??
A Sobremesa (1921): na intimidade da pintura de Pierre Bonnard.
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal