O bom exemplo de Cabo Verde
Ocabo-verdiano Pedro Pires ocupa um lugar especial entre os líderes internacionais que entrevistei. A conversa, espécie de entrevista de vida, aconteceu perto do final do seu segundo mandato presidencial e centrou-se, em boa parte, no sucesso democrático de Cabo Verde, um sucesso para o qual o antigo comandante da guerrilha do PAIGC nas matas da Guiné contribuiu de uma forma decisiva.
Poucos meses depois do nosso encontro, Pedro Pires recebeu o prémio Mo Ibrahim de boa governação em África, criado por um magnata das telecomunicações sudanês, recompensa por ter saído pacificamente do poder, algo que ainda não era (é?) uma regra no continente. Aliás, várias vezes o prémio tem ficado por atribuir, sinal de que a democracia está longe de ser um dado adquirido nos países africanos e tornando ainda mais extraordinário o percurso do pequeno Cabo Verde, arquipélago semidesértico cujo povo é, sem dúvida, o principal recurso, à falta de riquezas minerais.
Hoje há eleições nessa antiga colónia portuguesa. Aliás, votar em liberdade faz parte da tradição cabo-verdiana desde 1991, quando triunfou o multipartidarismo. Nesse ano, com Pedro Pires como primeiro-ministro e Aristides Pereira como Presidente, o PAICV perdeu tanto as legislativas como as presidenciais e a transição de poder para o MpD de CarlosVeiga e para Mascarenhas Monteiro impressionou o mundo. Depois, ao fim de uma década, deu-se o regresso do antigo partido único ao poder (um grande momento para Pedro Pires), para anos mais tarde, de novo, acontecer uma mudança e o MpD, o partido que nasceu da luta contra o unipartidarismo, impor-se.
Muito dependente das remessas de dívidas da Diáspora que vive na Europa e nos Estados Unidos, Cabo Verde vive tempos bastante difíceis por causa da pandemia, que afetou o turismo, o grande motor de desenvolvimento dos últimos anos. Mas mesmo assim chegam do país imagens de uma animada campanha eleitoral, com Ulisses Correia da Silva, do MpD, a confiar numa vitória confortável, mas Janira Hoppfer Almada, do PAICV, a revelar também ambição de ganhar. Ao todo são seis os partidos a concorrer a estas legislativas, que antecedem em alguns meses as presidenciais.
Tanto segundo o índice de desenvolvimento da ONU como no index de democraticidade da revista britânica The Economist, Cabo Verde surge sempre nos lugares cimeiros de África. E o mesmo acontece quando se olha para as estatísticas de alfabetização da UNESCO – 87% dos maiores de 15 anos sabem ler e escrever, e estamos a falar de números de 2015.
Pedro Pires, que foi estudante em Lisboa, combateu na Guiné contra o colonialismo português quando o projeto do PAIGC de Amílcar Cabral era governar um dia tanto em Bissau como na Praia. Em 1980, essa governação dos dois países recém-independentes por um único partido acabou, por iniciativa guineense, de forma trágica, e daí o nascimento do PAICV.
Qualquer comparação hoje entre o desenvolvimento de Cabo Verde e da Guiné-Bissau só serve para demonstrar que também em África a democracia traz mais resultados do que um ciclo de guerras civis e de revoltas militares em contexto de rivalidade étnica e entremeado de eleições para apaziguar a comunidade internacional. Portugal, como parceiro estratégico da África lusófona, tem tanto interesse como obrigação de ajudar a que o bom exemplo cabo-verdiano se consolide. Talvez um dia se torne a regra.