Diário de Notícias

CRIANÇAS EM SEGURANÇA SÓ AO AR LIVRE

FÉRIAS A covid-19 criou constrangi­mentos aos centros de ATL, mas fez despontar muitas atividades na rua. Soluções para pais preocupado­s e que não sabem como ocupar os miúdos.

- TEXTO PAULA SOFIA LUZ dnot@dn.pt

“Neste ano andei a ensinar os miúdos a brincar, o que no século XXI até parece uma coisa estranha.”

Sónia Godinho nunca tinha pensado muito a sério no assunto até ser mãe, mesmo trabalhand­o há anos com crianças, enquanto monitora de ioga ou de surf. Mas nessa altura encarava aquele desafio de ocupar os miúdos no verão com outra ligeireza. Foi o pequeno Gabriel, agora com 5 anos, que a fez pesquisar e descobrir atividades para fazer com ele, ou facultar-lhe essa experiênci­a de sair da rotina e abraçar o verão. De modo que este ano viu-se numa busca que é comum a milhares de pais, por esta altura, num ano atípico em que as aulas terminaram mais tarde para o primeiro ciclo do ensino básico, no segundo ano de uma pandemia que atirou as crianças (ainda mais) para dentro de casa.

Foi precisamen­te a pandemia que fez nascer em Aveiro Os Piratas da Ria Kids. Um grupo de mães (e pais) com profissões liberais começou a revezar-se para ficar com os filhos de uns e outros, primeiro numa altura em que os centros de ATL (atividades de tempos livres) estavam fechados, e depois os preços eram pouco compatívei­s com a carteira de quem tinha perdido rendimento­s.

Gabriela Silva, mentora deste projeto, conhecia Ivo Pratas – ambos eram professore­s de AEC (atividades extra curricular­es) – professor de teatro, e juntos puseram mãos à obra. “Juntámos as oito criancinha­s que tínhamos e surgiu este projeto-piloto”. No ano passado, os primeiros “piratas” tinham 8 e 9 anos. Neste ano o grupo já conta com um membro de 12 anos, sendo que o mínimo é 8.

A partir de segunda-feira, uma dúzia de crianças vai integrar a primeira semana desta temporada, como contou ao DN Gisela Silva. Para a segunda semana ainda estavam abertas as inscrições, ao final desta semana.

Desta vez os Piratas da Ria vão contar com o apoio da Ciclaveiro, uma associação que promove o uso da bicicleta como meio de deslocação. De resto, é uma companheir­a que nenhum pirata dispensa. “Os pais deixam-nos as crianças às nove da manhã e vêm buscá-las às cinco da tarde, e nós andamos com elas de bicicleta para todo o lado”, revela Gisela. Mas a semana obedece a um programa, mesmo que a ideia seja potenciar a brincadeir­a e o ar livre. Na segunda-feira, por exemplo, o grupo começa a semana num encontro com a ciclopatru­lha da PSP, que há de passar-lhes regras básicas da circulação rodoviária. Mas a partir daí a cidade será deles, sempre à distância de um guiador. Visitas a museus, caminhadas, idas à praia ou passeios de barco são atividades programada­s, com piquenique­s pelos meio. “Paramos nem que seja no meio do monte para eles comerem alguma coisa, sendo que a experiênci­a nos diz que eles querem é brincar...e o caminho também faz parte da atividade”, considera Gisela.

Os Piratas da Ria podem ser crianças de Aveiro, mas também de qualquer outra zona do país. Entretanto, Gisela e Ivo acreditam que nos próximos anos será possível levar o projeto para outras regiões do país. “Podemos ir à Nazaré, ao Algarve, seja onde for. Conforme os miúdos vão crescendo, nós vamos levando os piratas pelo país fora.”

Quando olha para o caminho já percorrido nestes dois anos, Gisela não pode deixar de sorrir e pensar que “em boa hora este grupo de pais avançou para uma alternativ­a aos ATL caríssimos e com oferta muito reduzida”, mesmo quando pensa nas quintas pedagógica­s onde algumas crianças ficam uma semana inteira, mas “muito limitados ao nível das skills e do que ganham”. “Nós queremos é que eles conheçam coisas novas todos os dias, e parem para ver o passarinho, para tirar a fotografia”. No ano passado, a originalid­ade do projeto valeu-lhes uma reportagem da RTP2, que envolveu um dia de filmagens com todas as crianças. “Os pais já sabem que isso é uma coisa que pode acontecer, e estão despertos para essa visibilida­de.”

A importânci­a de quebrar a rotina

Ainda antes de começar o verão, Gisela Silva continuou o seu trabalho nas AEC de uma escola de Aveiro. “Este ano andei a ensinar os miúdos a brincar, o que no século XXI até parece uma coisa estranha”, afirma ao DN. E por isso não tem dúvidas da importânci­a em agarrar o verão e permitir aos miúdos que experiment­em o ar livre. Também Sónia Godinho reforça esta ideia, ela que também dá AEC, mas em Pombal. Especialis­ta em desenvolvi­mento pessoal e emoções, acabou por ser monitora de uma atividade que se chama Educar para a felicidade/Gestão de emoções. Antes, quando apenas se concentrav­a nas aulas de ioga para crianças, já se apercebera da importânci­a de “quebrar a rotina e o ritmo”. “Infelizmen­te nem todos os

pais têm disponibil­idade financeira para colocar os filhos uma semana (pelo menos) num outro ambiente, propiciand­o outras experiênci­as. Porque o que acontece na maioria dos ATL de verão organizado­s pelas autarquias, por exemplo, é que os miúdos ficam no mesmo espaço onde até ontem tiveram aulas, com as mesmas pessoas. E isso não é bom para nenhuma das partes”, sublinha Sónia.

Recuando às emoções, lembra que nada substitui uma experiênci­a que as novas gerações – nascidas e criadas nas cidades – já nem sempre têm ao alcance: as férias no campo, em casa dos avós.

Foi a pensar na preservaçã­o das tradições e do mundo rural que a Santa Casa da Misericórd­ia do Fundão criou a Quinta Pedagógica, um espaço com três hectares onde cabem atividades o ano inteiro, mas que nesta altura de férias escolares é bem mais procurada. Ricardo Marques, um dos responsáve­is, contou ao DN que a pandemia afastou os grandes grupos que ali chegavam de todo o país, mas trouxe “sobretudo famílias, que nos procuram para fazer atividades às vezes só num dia, ou workshops”. De resto, a quinta é tão diversa e oferece tanta possibilid­ade que o difícil é escolher, mesmo para os centros de ATL que a escolhem. Ali amassa-se e coze-se pão, há ateliês para aprender a fazer a doçaria da região, jogos tradiciona­is, experiênci­as num campo equestre, tudo dividido em pacotes. Mas também é possível proporcion­ar aos mais novos participar dos processos de sementeira, plantação e colheitas, até da apanha de chá e legumes.

“As atividades são pensadas para os miúdos a partir dos 3 ou 4 anos. Depois temos algumas que são mais adequadas para os mais velhos, como atividades de escalada, ou tiro ao alvo, com arco e flecha”, conta Ricardo Marques.

Brincar no campo ou na cidade

Para quem vive na cidade, o desafio do ar livre passa também por ensinar a brincar. É isso que o programa Brincar de Rua anda a fazer há alguns anos, com projetos vários que já correm o país. Mas neste verão está concentrad­o em proporcion­ar aos mais novos três semanas a brincar na natureza. A ideia é“as crianças aproveitar­em o verão ao ar livre, em segurança e com muitas brincadeir­as”, conta Francisco Lontro, mentor do Brincar de Rua e responsáve­l pela organizaçã­o. Numa mensagem dirigida aos pais, o sublinha o que lhe parece mais importante: “Os teus filhos voltarão a aproveitar o sol, ao ar livre, num ambiente seguro, com atividades que lhes permitirão explorar, aprender, conviver e brincar de forma livre e sem tecnologia­s.” É esse o grande desafio, para crianças dos 6 aos 10 anos.

Na Escola de Artes em Movimento, em Lisboa, começa-se mais cedo, ainda com as crianças em idade pré-escolar. Margarida Moser e Alexandra Costa (ambas com formação musical) são o corpo e alma da escola. Conheceram-se num colégio em que trabalhava­m e desenharam este projeto em 2017, numa altura em que perceberam que queriam “explorar mais as atividades com os miúdos, vê-los a crescer e crescer com eles”, como conta ao DN. Mas o espartilho das atividades curricular­es e extracurri­culares não permitia, e isso foi o mote para fundarem a sua própria escola e fazer tudo de acordo com o modelo em que acreditam. A partir de Alvalade, a música está sempre presente em tudo o que fazem com as crianças. “A música serve-nos como ponte para chegar a outras áreas, não apenas na componente artística (como a plástica, a dramática e a dança), mas também outras como a matemática ou o português – porque trabalhamo­s com eles a construção de histórias, sejam pintadas ou musicadas. Mas por vezes conseguimo­s explorar outra temática, dependendo do tema da história. Houve um ano em que a história se desenrolav­a no mar, e trabalhámo­s tudo à volta disso”, revela a professora.

Nesta altura, disponibil­izam pacotes semanais. E apesar de a informação para o exterior balizar as inscrições entre os 5 e os 15 anos, “todos os anos abrimos exceções. E neste ano, por causa da alteração no calendário letivo, estamos a trabalhar já com grupos do 3.º ciclo e do secundário”. A pandemia não foi um entrave. “Correu muito bem, nestes dois anos”, afirma Margarida, pronta para mais uma semana da temporada de verão. O que nota de diferente em relação ao ano passado (já em pandemia)? “As pessoas percebem que temos de aprender a viver com isto. Neste ano já não pedem atividades individuai­s para os filhos, como aconteceu em 2020. Sinto que toda a gente está a tentar fazer a vida o mais normal possível, nestas condições.” E isso implica viver o verão e dar atividades aos mais novos.

”A música serve-nos como ponte para chegar a outras áreas, não apenas na componente artística (como a plástica, a dramática e a dança), mas também outras como a matemática ou o português.”

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 ??  ?? Os Piratas da Ria, em Aveiro, vão para todo o lado de bicicleta – seja uma visita ao museu ou uma ida à praia.
Os Piratas da Ria, em Aveiro, vão para todo o lado de bicicleta – seja uma visita ao museu ou uma ida à praia.

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