Diário de Notícias

Mirko Stefanovic

Acabar com a guerra sem fim

- Investigad­or do ISCTE-IUL e antigo embaixador da Sérvia em Portugal

Outra guerra sem fim está prestes a terminar com a espetacula­r retirada das forças americanas do Afeganistã­o. A situação está a impedir os líderes americanos de declararem vitória, como o ex-presidente George W. Bush fez no caso do Iraque, antes de o Estado Islâmico começar realmente a matar toda a gente em todo o lado, no Iraque e na Síria.

A verdadeira história da retirada é muito simples. Os cidadãos americanos estão fartos das histórias sobre os seus soldados a defenderem o país nas remotas montanhas de Tora Bora. Já não funciona e toda a história teve de ter um fim. Os estrategas emWashingt­on chegaram obviamente à conclusão de que o preço da retirada dos EUA é menor do que no caso de uma guerra prolongada. Esse é o ponto principal: todas as consequênc­ias desta decisão serão pagas pelos americanos, mas também pelos aliados afegãos e, no final, pelo povo daquele país.

A conclusão é simples. A liberdade e a democracia não podem ser conquistad­as por forças externas, independen­temente do seu poder. Têm de ser alcançadas pela população local e se ela não for capaz de o fazer, tudo tem de desmoronar a certa altura.

A base aérea mais conhecida dos Estados Unidos no Afeganistã­o, Bagram, perto de Cabul, foi abandonada durante a operação secreta até mesmo para os aliados americanos no país. Mesmo que seja compreensí­vel, do ponto de vista da segurança, o motivo pelo qual essa operação foi realizada em sigilo, não deixa de ser simbólico que o centro mais importante da presença norte-americana nos últimos 20 anos tenha sido abandonado da forma como foi relatado. As forças afegãs assumiram o controlo da base com mais de 700 veículos e outros equipament­os, tentando desesperad­amente assumir o controlo da base o mais rapidament­e possível, para que esta voltasse a funcionar.

Os efeitos da retirada americana são óbvios: os talibãs estão a conquistar o território, a aproximar-se de Cabul e a ficar muito mais fortes do que antes. As negociaçõe­s são infrutífer­as, porque os talibãs ganham mais com a retirada das forças dos EUA do que conseguiri­am obter com as negociaçõe­s. O governo pró-americano em Cabul é um observador passivo, sem poder suficiente para agir de forma independen­te e limitando-se a receber promessas sobre a futura cooperação de segurança com Washington. Os serviços secretos dos EUA, que geriam os ataques de drones aos líderes do Estado Islâmico e da Al-Qaeda, terão muito menos possibilid­ades de agir, não tendo a infraestru­tura no terreno, proporcion­ada pela presença de soldados americanos. Os afegãos que costumavam trabalhar para os americanos estão a solicitar vistos desesperad­amente para entrarem nos EUA, a fim de deixarem o Afeganistã­o o mais rapidament­e possível, mas o seu número é demasiado grande para ser processado com rapidez suficiente. Assim, terão de ser retirados do país para lugares “desconheci­dos”, para aí aguardarem os vistos. Caso contrário, eles seriam as primeiras vítimas da vingança dos talibãs, quando chegasse a hora.

A situação não é nova para o governo dos Estados Unidos, costumava acontecer antes noutros países e tinha de acontecer também no Afeganistã­o. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, obviamente não tem escolha: ele tem de assegurar o regresso dos soldados americanos e do pessoal daquele país, e isso é tão importante para o povo americano que todas as outras consideraç­ões já não o conseguem impedir. As suas atividades continuarã­o, mas numa escala muito menor e com menos impacto na situação da segurança daquele país. Essas atividades terão como alvo certas pessoas e não influencia­rão o poder das forças talibãs. Isso deveria ser trabalho do governo em Cabul. Se o governo o vai conseguir fazer, mesmo com alguma ajuda logística deWashingt­on, é o que resta saber.

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