António Araújo
F for Fake
Em Le peintre et la vie moderne, Baudelaire afirmou que, na noção de beleza, há um elemento eterno, invariável, mas também um elemento relativo, circunstancial, ligado a cada época e a cada moda, a cada paixão momentânea. Sem este último, “que é como que o invólucro divertido, titilante, o aperitivo do manjar divino, o primeiro elemento seria indigesto, inapreciável, inadaptado e inapropriado à natureza humana”. O ideal intangível do belo, do “sublime”, é, pois, algo que depende muito, muitíssimo, do gosto passageiro de cada período histórico. Hoje considerados os expoentes máximos da beleza intemporal e universal, Michelangelo Caravaggio e JohannesVermeer foram votados ao anonimato e ao completo abandono durante séculos, só sendo resgatados do esquecimento em finais de Oitocentos ou por volta disso.
Poucas coisas ilustram tão bem a época que vivemos como as alucinações do mercado artístico internacional, onde se pagam somas absurdas por obras de autenticidade mais do que duvidosa, como sucedeu ainda há pouco com Salvator Mundi, um falso Leonardo daVinci que um príncipe saudita arrematou por uns astronómicos 450 milhões de dólares.Vemos assim que, no nosso tempo, os dois elementos da beleza – o eterno, invariável e o circunstancial, efémero – diluem-se um no outro, com prejuízos para ambos. A “financeirização” das economias ocidentais e a concentração inaudita de riqueza a que vimos assistindo (e que a covid-19 agravou), a necessidade de branquear capitais de origens obscuras e malévolas, o incontrolável e bimbo desejo de possuir e exibir a arte como sinal de status e marca de distinção, muitos factores explicam este frenesi estético e comercial, que é, ao cabo e ao resto, o mesmo frenesi que precipita o irremediável aquecimento do planeta, cada vez mais grave (três notícias só da semana passada: vaga de calor no Canadá; temperatura recorde na Antártida; incêndios colossais em Chipre).
Com uma procura tão intensa, tão sôfrega, pelas obras dos grandes mestres, a oferta mostra-se escassa para as encomendas. O “mercado”, como sempre, encarregou-se de resolver o problema: segundo o The New York Times, 40% das obras actualmente postas à venda são falsas.Um ex-director do Metropolitan Museum of Art vai mais longe, ao confessar que 60% das peças que lhe ofereceram para compra nos 16 anos que esteve no cargo “não eram o que pareciam”. O fenómeno não é novo, nova é a sua dimensão, a escala, mas já em 1940 a Newsweek escrevia, com graça, que “das 2500 telas autênticas de Jean-Baptiste Corot, 7800 estão em colecções americanas”. A falsificação é “tão velha como a árvore do Éden”, disse OrsonWelles em 1973, no filme-documentário F for Fake, onde contracenou na tela com a bela croata Oja Kodar, sua amante de muitos anos. De facto, já Miguel Ângelo aldrabava os Médici: enterrava esculturas no jardim dos palácios do mecenas e descobria-as miraculosamente, como obras romanas que ali estivessem há séculos.
Houve e há falsários espantosos, capazes de produzir quadros até mais perfeitos do que os dos mestres que copiam. Quando são descobertos, beneficiam do silêncio dos críticos que louvaram e autenticaram tais pinturas, das galerias e dos antiquários que as venderam, dos museus onde estiveram expostas, até dos compradores privados que por elas pagaram fortunas. Ninguém quer reconhecer que foi enganado, que se deixou seduzir pelo poder de uma bela tela, que, sendo museu ou coleccionador particular, se deixou levar pela ganância de ter no seu acervo uma obra do pintor A ou B. Numa fraude gigantesca ocorrida em França nos anos 1990, o Ministério Público chegou a ameaçar marchands e coleccionadores de cumplicidade com o falsário, caso teimassem em não apresentar queixa. Ninguém se mexeu, ninguém abriu boca. Noutros casos, para não admitir o erro, peritos e galeristas insistem na autenticidade de obras descaradamente forjadas, mesmo contra todas as evidências de fraude.
A vida e obra – obras, porque foram muitas... – de um dos maiores falsificadores do século XX, o holandês HanVan Meegeren, foram contadas num livro apaixonante, Eu FuiVermeer – A lenda do falsário que enganou os nazis, de FrankWynne (há tradução brasileira, da Companhia das Letras). Como sucede frequentemente aos falsários, Meegeren foi um pintor falhado na juventude, um desfasado do seu tempo, que fazia paisagens e retratos num estilo convencional e academizante praticado há 50 ou 60 anos e, naturalmente, acabou fustigado pela crítica e gozado pelos colegas. A falsificação é, muitas vezes, a vingança secreta de um pintor desprezado contra o establishment que o ostracizou: ver exposta na parede de um museu, com todas as honras, uma tela falsa de um Picasso ou de um Rembrandt é algo que reconforta os artistas fracassados, uma desforra íntima, inconfessável, contra o mundo da arte e dos críticos. Meegeren adorava acompanhar as multidões extasiadas ante os seusVermeers, chegava ao ponto de proclamar alto e bom som que aqueles quadros tinham sido pintados há um par de meses, tudo para ter o supremo gozo de os turistas o mandarem calar e de lhe dizerem para conO templar em silêncio aquela beleza sublime, quase divina...
Para copiarVermeer, Meegeren teve de usar as técnicas do mestre, de comprar quadros do século XVII apenas para lhes usar as telas e molduras da época, de gastar fortunas a adquirir pedras lápis-lazúli para fabricar o azul-ultramarino, a mais preciosa das cores, que irrompera na arte ocidental pela mão de Giotto, mas que, devido ao seu preço incalculável, só era usado para pintar o arco celeste, o manto da Virgem ou outros paramentos sacros.Vermeer singularizou-se por só utilizar azul-ultramarino nos seus quadros, mesmo na coloração de tecidos profanos de senhoras burguesas, vulgaríssimas, o que obrigou o seu falsificador a comprar em Londres, na míticaWinsor & Newton, doze onças de lápis-lazúli a 22 dólares a onça – à época, 1932, a onça de ouro custava 20 dólares. Num antiquário, adquiriu vários copos de vinho do século XVII e travessas de estanho para servir de adereços na composição da pintura. Depois, estudou obsessivamente, leu tudo o que podia, investigou ao milímetro as cores deVermeer. FrankWynne enumera-as: para os amarelos, o falsificador teve de usar goma-laca (resina de garcíniado Camboja), ocre amarelo e amarelo de chumbo e estanho (o amarelo inconfundível do casaco debruado a arminho da Mulher com Colar de Pérolas, queVermeer pintou em 1664); para os vermelhos, óxido de mercúrio para fazer vermelhão, terra-de-siena queimada e carmim, obtido a partir da cochonilha, o insectozinho canalha que destrói os jardins e que, esmagado, produz a cor sanguínea que marcou a pintura do Siglo de Oro; para os escuros, produziu negro de fumo, “pó de sapato”, tendo o cuidado de o usar com parcimónia, já que as sombras de Vermeer são geralmente castanho-escuras, não negras. No azul, o ultramarino vindo do lápis-lazúli, mais caro do que o oiro.
Vermeer usava uma paleta reduzida – dez a doze tons, no máximo – e, do ponto de vista técnico, a maior proeza era o modo como usava as lacas e os vernizes para criar uma ilusão de vida e, de facto, quando hoje olhamos para um quadro seu (dos autênticos), o que mais impressiona não é a suavidade dos interiores ou a placidez dos rostos, mas a estranha cintilância do conjunto, como se a luz emanasse da própria pintura, ao invés de se projectar sobre ela. Para obter esse efeito, Han Van Meegeren teve de ultrapassar duas dificuldades tremendas: por um lado, conceber um método para endurecer a tinta, de modo que esta passasse o teste do álcool, a forma mais simples e clássica de detectar a falsificação de uma pintura antiga (passando um pedaço de algodão com álcool na superfície da tela, se o algodão ficar manchado é prova de que as tintas são recentes); por outro lado, e esse foi o desafio técnico mais espinhoso, teve de conseguir reproduzir o rendilhado finíssimo da craquelure, as rachas minúsculas na tinta que caracterizam os velhos quadros.
Instalado no sul de França, Meegeren passou meses, mais de um ano, a fazer experiências, construiu um forno especial com um termóstato para regular a temperatura a que ia submetendo a tela e, por fim, teve uma intuição genial, ao perceber que um produto que há pouco entrara no quotidiano de toda a gente – a baquelite, inventada em 1909 – continha duas substâncias, fenol e formaldeído, que, misturadas com óleo de lilás, permitiam que uma tela fosse ao forno e adquirisse a almejada craquelure sem que as cores fossem alteradas ou perdessem o brilho.
seu maior golpe de génio, porém, foi o modo como soube seduzir os peritos na obra do mestre de Delft, os quais se debatiam há muito com um problema insolúvel: no conjunto das obras do mestre, havia uma gritante disparidade de estilo e de tema entre as suas primeiras criações (Diana e as Suas Companheiras, pintada circa 1653-1654) e os seus primeiros trabalhos da fase madura (A Leiteira, circa 1657-1658). Entre uns e outros, havia um hiato, qualquer coisa que faltava, algo que pudesse fazer a ponte entre dois estilos tão diferentes. Os especialistas afiançavam que, algures, deveria existir um ou mais quadros que estabelecessem a ligação em falta e apostavam que esses quadros teriam temáticas religiosas. HanVan Meegeren pintou para eles esse quadro ou, melhor, esses quadros e, através de uma burla extraordinária, persuadiu Abraham Bredius, o decano dos peritos em Vermeer, a autenticar A Ceia de Emaús, uma tela grotesca, inenarravelmente má, mas aclamada por todos como uma das mais belas e mais significativas obras do mestre. A fraude era tão grande e tão desbragada que, se tivessem observado com cuidado, teriam notado que uma das figuras era um retrato fiel da mulher do falsário, Jo Oerlemans, por sinal uma actriz famosa em toda a Holanda. Mas como Bredius, do alto dos seus 83 anos, afiançara que a tela era verdadeira e, mais, escrevera um artigo a louvá-la na Burlington Magazine, a mais snobe das revistas de arte, ninguém se atreveu a levantar a mínima suspeita e o quadro foi vendido por uma quantia fabulosa e exposto com pompa no Museu Boijmans, de Roterdão.
A partir daí, foi um fartote de aldrabices: Jesus entre os Doutores, Cristo e a Mulher Adúltera, uma portentosa Última Ceia, Isaac Abençoando Jacob e, por último, A Lavagem dos Pés de Cristo. Ninguém se interrogava como era possível surgirem em tão pouco tempo tantas e tão variadas pinturas religiosas de JohannesVermeer. Pelo contrário, juntas de peritos autenticavam tudo aquilo, sem pestanejarem, mesmo os piores quadros de Meegeren, pintados quando já estava afundado no álcool e na morfina. Uma das telas acabou nas mãos ávidas de Hermann Göring e seria descoberta pelos Aliados numa mina de sal em Altaussee, na Áustria, escondida com dezenas de obras-primas, essas sim verdadeiras. Foi isso que precipitou a queda do falsário, preso e levado a julgamento, falecido de ataque cardíaco em 1947, nas vésperas de entrar na prisão. Ainda hoje não se sabe ao certo quantas falsificações suas se encontram expostas nos melhores museus e galerias do mundo.
Tudo isto nos traz à lembrança o Museu-Colecção Berardo. Para o caso, é indiferente sabermos se o que por lá se mostra é verdadeiro ou se é falso, se terá real qualidade ou será apenas assim-assim, um amontoado de obras compradas a martelo. O que temos sabido sobre como essa colecção se fez e forjou, como foi usada numa gigantesca burla de mil milhões (dava para comprar dois ou três Salvator Mundi), são tudo coisas que, irremediavelmente, impregnam as salas do Centro Cultural de Belém com o odor fétido da corrupção e do crime. Nas paredes, nos tectos, nos corredores, ecoa a gargalhada sinistra de quem se crê impune e à entrada, em grande destaque, permanece um retrato a óleo do vil comendador. Uma vergonha.