Gonçalo Reis conta como foi gerir “elefantes públicos” aos comandos da RTP
O DN convidou Gonçalo Reis, autor do livro Serviço Público, A minha vida aos comandos da RTP, que será lançado terça-feira (dia 13) para a pré-publicação de parte da obra.
“I saw our role as taking Britain on a further stage of modernisation, creating public services and a welfare state that combined investment with reform to make them personal, responsive, entrepreneurial... For a public service, even one like the NHS, in the negotiation of contracts for buildings, IT equipment, technology, it is like a business.When it employs or fires people, it is like a business.When it seeks to innovate, it is like a business.” Tony Blair
Criar as condições para que haja sistematicamente uma gestão eficaz das instituições públicas deveria ser uma das prioridades para o país. A verdade é que o sector empresarial do Estado continua a ter uma dimensão muito significativa, atuando em setores críticos, prestando serviços a quase toda a população, interagindo com inúmeros parceiros nas respetivas cadeias de valor, envolvendo orçamentos enormes, gerindo recursos avultados, tanto humanos como patrimoniais. Segundo dados da UTAM e da Pordata, o setor empresarial público soma gastos operacionais de 6 mil milhões de euros/ano e emprega mais de 170 mil pessoas. Ou seja, isto não é a feijões. O que se passa neste universo toca a todos os portugueses. Interessa muito que funcione bem.
Assim, dotar esta esfera gigante de maior rigor orçamental, mais agilidade, mais eficiência, maior capacidade de resposta, mais orientação para o utilizador, níveis adequados de competitividade, elevados graus de inovação, ambientes abertos ao risco e à vontade de fazer melhor – tudo isto deveria estar na agenda das nossas elites. Uma gestão proativa destas alavancas teria enorme impacto, não apenas no universo do próprio Estado, mas na produtividade da economia como um todo, no nível de riqueza geral e na qualidade dos serviços oferecidos aos cidadãos. São desafios importantes que merecem um pensamento prospetivo, uma visão estratégica arrojada, em simultâneo com uma firme vontade reformista – ingredientes que temos abundantemente na nossa sociedade, na iniciativa privada, no ecossistema científico e tecnológico, mas que infelizmente ainda não foram transferidos de forma sistemática para o universo público.
Acredito no papel nobre que um Estado corretamente dimensionado e bem preparado pode desempenhar na sociedade. Acredito no contributo decisivo que as instituições públicas podem realizar, desde que tenham estratégias e obrigações claramente definidas, desde que atuem num registo de competitividade e sustentabilidade, respeitando as boas regras da concorrência, com rigor orçamente e foco no desempenho. Estas são as marcas de uma sociedade civilizada, inclusiva e avançada, em que, para além de um setor privado que funcione livremente e sem amarras, há entidades públicas que prestam serviços de excelência à população, com graus de eficácia semelhantes às organizações mais inovadoras.
Acompanho com atenção a economista Marina Mazzucato, que escreveu o famoso livro The entrepreneurial state e, mais recentemente, o inspirador Mission economy. Esta pensadora progressista, mas desempoeirada, com forte orientação para a equidade, mas preocupada com a eficiência e a criação de valor, é uma lufada de ar fresco na forma como se encaram estes temas. Em vários estudos, Mazzucato tem sublinhado o papel positivo, decisivo, que as políticas públicas certas podem ter. Mas insiste nas vantagens de um Estado com forte sentido de missão, que tenha espírito de inovação, que saiba funcionar em rede e de forma descentralizada, que fomente um ambiente próximo das start-ups tecnológicas, que interaja com os agentes mais criativos e empreendedores do setor privado, que funcione numa lógica de objetivos e orientação para os resultados. Não basta “ser” Estado, é preciso atuar como um Estado competente.
Um facto óbvio é que se as práticas, a cultura, os princípios que regem a Administração Pública não mudarem, então os resultados não irão melhorar. Isto é tão elementar, mas tão esquecido, que chega a ser revoltante para quem se interessa por estas matérias. Governo após governo, década após década, todos nos prometem a mirífica modernização da máquina administrativa. Mas o dia a dia da gestão do setor empresarial do Estado – que até deve ser uma área relativamenprivilegiada na esfera global pública – continua tristemente lento, incrivelmente sujeito a regras caducas, guiado por princípios burocratas e irritantemente longe das melhores práticas. E as coisas simplesmente não têm de ser assim. A tão esperada transformação do Estado não é uma questão de dinheiro, ou não é apenas uma questão de dinheiro. Verdadeiramente fundamental é haver visão estratégica, princípios desempoeirados de gestão e capacidade de concretização.
Quem conhece a realidade das empresas públicas, e quiser identificar as principais falhas nos modelos de gestão e no exercício da função acionista, tem, infelizmente, um mar de situações a apontar. A título ilustrativo: a ausência de discussão de alto nível sobre as missões das instituições, sobre a envolvente concorrencial e sobre as transformações que afetam qualquer indústria votam as empresas públicas a um estado geral de atraso face aos agentes mais ativos de cada setor. Os inacreditáveis empecilhos na gestão de recursos humatal nos, a impossibilidade de premiar monetariamente o desempenho e de realizar uma efetiva gestão de carreiras impedem a atração dos melhores talentos. O receio de soluções flexíveis e os inconcebíveis bloqueios para a contratação de quadros novos com competências técnicas (mesmo nas empresas que realizam sistematicamente rescisões de quadros excedentários, como a RTP) votam as empresas públicas a níveis fracos de produtividade e resultam em ambientes de apatia. As dificuldades em realizar investimentos tecnológicos, o desprezo pelas áreas de sistemas de informação, os morosos processos de contratação pública, a ditadura das regras burocráticas e legalistas contribuem para atrasos crónicos destas empresas no que toca a políticas de inovação, limitando as apostas em projetos disruptivos que poderiam beneficiar os utilizadores. A dificuldade à partida em reorganizar os patrimónios imobiliários excessivos implica uma afetação errada de recursos e gera elevados custos de manutenção, afetos a bens improdutivos.
Os mecanismos de acompanhamento e reporte tradicionais exercidos por um acionista distante, com uma perspetiva demasiado contabilística e uma clara aversão ao risco, impedem a realização de verdadeiros programas de transformação empresarial, com impactos robustos e de médio prazo. A dramática ausência de capacidades de planeamento estratégico que resulta do desinvestimento em quadros de qualidade, que tem acontecido nas últimas décadas, tanto do lado do acionista (ministérios) como nas próprias empresas, traduz-se numa lamentável incapacidade de reinvenção e modernização dos organismos a partir de dentro (para não falar nos decorrentes encargos com consultores externos para suprir a falta de massa cinzenta do Estado). E, claro, a manutenção ou rotação de pessoal político sem a devida qualidade em níveis decisivos na engrenagem do Estado é um cancro com efeitos absolutamente desmobilizadores para os que ambicionam melhorias e para os que acreditam em evoluções.
A vivência de todos estes bloqueios é desconcertante e, mais do que isso, limitadora para os gestores e para os quadros técnicos das instituições públicas. Como CEO da RTP, presenciei inúmeras situações sem sentido, que atrasavam o nosso trabalho e cerceavam o potencial das reformas que planeávamos. A começar pelas fraquíssimas metodologias de acompanhamento por parte do próprio Estado. Tendo lidado com três governos e uma série extensa de ministros e secretários de Estado, não consegui implementar uma prática que me parecia tão simples como útil: realizar reuniões periódicas, com cadência semestral (por exemplo), onde estivessem presentes em simultâneo os dois representantes do acionista Estado (Cultura e Tesouro), em conjunto com a administração da empresa, para debater os temas estratégicos e as prioridades da RTP. A introdução de práticas regulares de acompanhamento e reflexão permitiria ganhos óbvios em termos de planeamento, antecipação dos problemas, definição clara de orientações e linhas de ação. Como é possível que nunca se tenham reunido à volta da mesma mesa os dois interlocutores do acionista e o órgão máximo da gestão? Outro empecilho desesperante é o crónico atraso na aprovação dos planos de atividades e orçamento, instrumentos essenciais para a boa gestão das empresas. Pois em seis anos, e tendo sempre apresentado orçamentos de equilíbrio, nunca tivemos um plano aprovado no primeiro semestre, sendo que muitas vezes nem no terceiro trimestre, e apenas no final do ano, lá vinham os documentos devidamente validados. O problema é que esta não é a realidade apenas da RTP, mas sim da generalidade do setor empresarial e da máquina do Estado, que infelizmente está a léguas das boas referências. Disse vezes sem conta ao acionista que preferia ter um envelope financeiro mais restrito e dispor de maior capacidade de manobra como gestor para rentabilizar as estruturas fixas e implementar ganhos acrescidos de produtividade. Prefiro isto ao cenário inverso, ou seja, à fórmula tradicional de manter ou fazer crescer ligeiramente os orçamentos sem dar espaço às políticas de gestão verdadeiramente transformadoras. Mas, infelizmente, é neste registo bastante estéril que se mantém a generalidade dos nossos governantes. Ficaríamos todos mais bem servidos, utilizaríamos menos recursos dos cidadãos e teríamos melhores prestações dos serviços públicos se trocássemos a filosofia dirigista e situacionista pela preponderância da gestão profissional, aberta à inovação, flexível mas responsabilizadora.
Tudo isto é bem conhecido dos portugueses, mas nada disto tem de ser necessariamente assim, de modo fatalista. Tudo isto poderia, e deveria, ser trabalhado e corrigido. Seria necessário, sim, um grande consenso para as mudanças de vasto alcance. O problema é que a direita, quando chega ao poder, não tem tido o tempo, ou o engenho, ou a paciência, ou a fé, para se debruçar a sério sobre a máquina estatal. A esquerda, por sua vez, contenta-se com políticas manifestamente paliativas, lutando na essência para preservar o statu quo, evitar conflitos, gerir expectativas imediatas e salvaguardar dentro do possível o bem-estar dos funcionários. É curto. Não estamos, de facto, como sociedade, a fazer o máximo para modernizar, preparar o futuro, dar saltos de competitividade e introduzir a audácia necessária que possibilite a qualificação do desempenho público, com níveis de custos aceitáveis, sem asfixiar as famílias e o resto da economia.
A reinvenção da máquina do Estado e sobretudo o incremento do nível dos serviços prestados aos cidadãos são desafios cruciais para a sociedade portuguesa. Trata-se de matérias importantes de mais para serem alvo de opções puramente ideológicas e urgentes de mais para serem sucessivamente adiadas por todos os governos, de todas as cores. Pequenas melhorias, pontuais, em determinadas frentes ou organizações, resultantes de ações temporárias por parte de alguns voluntaristas competentes, não bastam para inverter a tendência e mudar a figura geral. Ficam aquém daquilo que o país precisa e manifestamente aquém daquilo que o país consegue fazer. A resolução dos grandes problemas do Estado – sobrecusto, por um lado, e baixa qualidade dos serviços, por outro – requer uma combinação inteligente de medidas mais duras, de reestruturação e ganhos de eficiência, em paralelo com medidas mais soft e prospetivas, de inovação e desenvolvimento de competências. Ambas as abordagens terão de coexistir se quisermos mesmo avançar de forma sustentável. O tempo das soluções simples (cortar por cortar ou proteger por proteger) acabou.
Será imprescindível, mais cedo ou mais tarde, desenvolver uma visão abrangente, contemporânea, estruturada, lançada a partir do topo, mas mobilizadora, prospetiva, mas com bom senso, futurista, mas fazível. Isto é todo um projeto de país e um programa para uma geração. Um dia há de ser feito em Portugal. Será descrito como utópico, os promotores serão olhados de lado, os trabalhos serão hercúleos, as resistências inúmeras, mas o impacto há de ser enorme. Vale a pena tentar. Serão necessários líderes dispostos a colocar os preconceitos ideológicos na gaveta e as práticas sectárias entre parênteses. Será uma tarefa para os reformistas de fundo, dispostos a atuar numa lógica de gestão transformacional, persistente, moderna, orientada para o cidadão. Um dia chegaremos lá.
Quem conhece a realidade das empresas públicas e quiser identificar as principais falhas nos modelos de gestão e no exercício da função accionista tem, infelizmente, um mar de situações a apontar.