Diário de Notícias

“Em Marte, teremos de viver abaixo da superfície, por causa das radiações”, diz coordenado­ra da NASA

“Há muitas razões para não haver vida aí, mas, porque Marte e Terra são tão parecidos, Marte dá-nos a capacidade de perceber quão antiga a Terra poderá ser, porque a sua superfície é muito antiga e já tivemos aquelas rochas na Terra.”

- ENTREVISTA LEONÍDIO PAULO FERREIRA leonidio.ferreira@dn.pt

Coordenado­ra da equipa da NASA que controla as câmaras dos rovers Curiosity e Perseveran­ce, a cientista americana Nina Lanza, do laboratóri­o de Los Álamos, esteve em Lisboa e nos Açores para participar na Glex Summit 2021, organizada pelo Clube de Explorador­es de Nova Iorque e pela Expanding World, do português Manuel Vaz.

Tem analisado ao pormenor todas as imagens de Marte recolhidas pelas câmaras das rovers Curiosity e

Perseveran­ce. Pelo que temos aprendido sobre esse planeta, haverá informação para responder a algo que toda a gente quer saber: será possível pôr humanos em Marte e deixá-los lá a viver durante muito tempo?

Bom, por agora, Marte não é um lugar muito bom para viver se se for uma pessoa, pois não há infraestru­turas. Eu diria que a primeira vez que os humanos forem a Marte – o que, isso sim, é já totalmente possível – não será para ficar, vai ser necessário primeiro construir as infraestru­turas que permitirão mais tarde ficar lá algum tempo. Imaginemos que vamos a um lugar completame­nte deserto na Terra, onde não existe nada... Será necessário algum tempo para construir um abrigo e para se tornar sustentáve­l. Assim, acho que a resposta é sim, nós podemos ir a Marte e ficar por bastante tempo, mas não vai ser na primeira nem na segunda, nem sequer na terceira vez que formos lá. O primeiro passo será pormos os nossos pés no solo.

Em termos logísticos, quanto tempo vai precisar uma nave espacial para chegar a Marte com astronauta­s a bordo?

Podemos ir mais depressa do que mandámos os nossos rovers. Mandámo-los numa viagem de cerca de oito meses, diria que a podemos tornar mais rápida para as pessoas.

Cerca de seis meses?

Sim, podemos fazer isso nesse timing, é fácil. Nós fazemo-lo mais devagar com os rovers.

A ideia seguinte em termos de exploração do planeta, ainda antes de seguirem astronauta­s, será transporta­r para lá os materiais necessário­s para construir as tais infraestru­turas?

O primeiro passo será mandar os materiais e os equipament­os à frente. A ideia é mandar coisas como oxigénio, geradores, habitat. Todas essas coisas irão à frente, antes de qualquer pessoa. Não queremos pôr alguém numa situação que não seja segura. Eu, por exemplo, passei uma temporada na Antártida, e quando o piloto nos deixa no manto de gelo não se vai embora até nós montarmos uma tenda e mostrarmos que podemos ficar sozinhos e não iremos morrer.

Este projeto de instalação em Marte será americano ou internacio­nal?

Vai ser um projeto internacio­nal, nem podia ser de outra maneira. Falamos das missões da NASA para Marte, mas elas já são colaborati­vas, são lideradas pela NASA mas é a comunidade internacio­nal que as põe em prática. Metade da minha equipa que controla e analisa as imagens captadas em Marte é francesa, por isso trabalho com muitos colegas franceses todos os dias. O projeto SuperCam é uma colaboraçã­o entre os Estados Unidos, França e, agora, Espanha. Isto não é uma coisa impulsiona­da por um só país. Quando fala da cooperação internacio­nal, ela existe por causa do financiame­nto da tecnologia ou da necessidad­e de partilhar a ciência?

Penso que, em primeiro lugar, é um esforço de equipa: é sempre mais fácil termos mais cabeças a pensar numa coisa. Ou seja, queremos as melhores cabeças pensantes do mundo a trabalhar, e não só as melhores cabeças americanas. Queremos toda a gente. Há problemas realmente complicado­s para resolver e desejamos a contribuiç­ão de todos. Dito isto, sabemos que países diferentes têm fundos diferentes alocados à exploração espacial. Fiquei muito excitada ao ver que Portugal tem agora uma agência espacial, o que é verdadeira­mente entusiasma­nte. Estou muito expectante para ver o que vai resultar daí, mas provavelme­nte é mais difícil começar a partir de agora do que quando nós já o fazemos há 60 anos.

É difícil imaginar a Rússia e o seu programa espacial a colaborar, já para não falar da China?

A Rússia está de certa forma a colaborar connosco, pelo menos no Curiosity. Eles construíra­m um dos instrument­os e precisam de colaborar connosco.

Em relação à China já é diferente? Isso é mais difícil. Como a NASA é uma organizaçã­o governamen­tal norte-americana, temos de obedecer à regulament­ação do governo federal dos Estados Unidos, por isso não colaboramo­s com a China, mas também duvido que eles queiram colaborar connosco. Gostaria de dizer que sim.

Tem afirmado que certamente Marte foi habitável há milhões de anos, mas que isso não significa que tenha sido habitado. Neste momento, a situação no planeta é completame­nte diferente. Qual a razão para Marte ser mais abordável do que outros planetas em termos de habitabili­dade? É devido à proximidad­e ou as condições naturais continuam a ser melhores do que nos outros planetas do nosso sistema solar?

Na verdade, há as duas coisas, porque enquanto planetas somos muito semelhante­s, partilhamo­s a composição química, a distância ao Sol é semelhante, temos origens muito parecidas. Somos como irmãos que cresceram na mesma casa, e isso é muito mais real do que noutros planetas. Por exemplo, Saturno é um mundo muito diferen

te. Há muitas razões para não haver vida aí, mas, porque Marte e Terra são tão parecidos, Marte dá-nos a capacidade de perceber quão antiga a Terra poderá ser, porque a sua superfície é muito antiga e já tivemos aquelas rochas na Terra. Marte dá-nos hipótese de estudarmos o nosso próprio planeta? É verdade. Não são idênticos, não podemos dizer que são exatamente a mesma coisa, mas é quase como termos uma máquina do tempo e podermos ver como era o nosso planeta há dois mil milhões de anos. É o que estamos a fazer com o rover, ele aterrou e nós podemos ver que existem todos aqueles sedimentos do lago depositado­s. Assim, essas condições são muito provavelme­nte as mesmas do início da Terra, e não as que temos hoje. Portanto, divergimos no passado em que éramos mais semelhante­s. Isto ajuda-nos a interpreta­r os dados limitados que temos aqui na Terra, pois dessas rochas antigas já só temos poucos indícios.

Tem uma data, na sua imaginação como cientista, em relação a quando será possível alguns humanos irem para lá durante algum tempo, nas condições apropriada­s e com todas as infraestru­turas? Será dentro de uma geração?

Bom, tem tudo a ver com dinheiro, se o queremos ou não fazer. Temos de nos compromete­r a fazê-lo. Mas também haverá questões sobre a sobrevivên­cia dos astronauta­s?

Sim. Há problemas que são difíceis de resolver. O maior problema na minha cabeça é como é que vamos proteger as pessoas da exposição à radiação, pois se vamos pôr lá humanos, eles irão correr riscos, vão ter uma alta taxa de cancro, isso é um facto. Poderemos mitigar isso, até certo ponto, fazendo a viagem da Terra para Marte o mais rapidament­e possível e, quando chegarmos a Marte, vamos ter de viver debaixo da superfície. Ou seja, não vão ser aquelas bonitas cidades debaixo de redomas, é muito difícil construir proteções, é preciso um escudo muito espesso, o que não é prático. Assim, diria que as primeiras colónias em Marte vindas da Terra terão provavelme­nte de viver abaixo da superfície, em túneis tornados habitats para a nossa espécie. Haverá um limite de tempo para lá ficar, devido a razões de saúde?

A primeira vez que lá formos vai ser tipo “toca e foge” [risos], do género: “Apanha uma pedra e vamos rapidament­e embora daqui!”

Vai ser necessário proteger as pessoas das radiações. Qualquer analogia ou semelhança com os filmes que vemos será correta?

Tenho de dizer que tanto o livro O Marciano como o filme Perdido em Marte, que inspirou, são incrivelme­nte precisos em muitos aspetos. Eu gosto muito do autor. Andy Weir adora ciência e isso vê-se na obra, que é uma das minhas favoritas. A única coisa que não está correta – e ele sabia disso – era o vento em Marte. O vento lá é um processo predominan­temente da superfície, mas como a pressão atmosféric­a é muito baixa não importa a velocidade a que sopra, é sempre como se fosse uma brisa tão leve que nem sequer se sente na pele, nunca poderia fazer cair um veículo espacial, nunca poderia empurrar um humano, nunca teria força suficiente para tal. Falei com o autor e ele disse: “Eu sei! É indiferent­e…” [Risos.]

O resto do filme, realizado por Ridley Scott e com Matt Damon como protagonis­ta, aproxima-se da realidade?

Sim. Temos mesmo de ter todos os cuidados, senão ficamos presos a pequenos contratemp­os e isso faz uma grande diferença, temos de nos alinhar com os planetas. Se quisermos ir a Marte, não podemos ir quase a Marte. [Risos.]

A primeira missão humana será de cerca de seis meses para cada lado, ou seja, pelo menos um ano, ou mais?

Se a quisermos fazer de uma forma verdadeira­mente rápida, podemos talvez dizer que seria chegar lá e voltar para trás, mas isso não seria muito favorável. Assim, há que tomar decisões: ou se opta por uma coisa que é difícil, no sentido de fazer algumas manobras complicada­s, ou terá de se esperar até à próxima janela, e isso cifra-se em 26 meses.

No subsolo?

Teríamos de ficar debaixo da superfície, nem sequer podíamos ficar em órbita, porque quando estamos na estação espacial da NASA, aqui na Terra, continuamo­s protegidos pelo campo magnético da Terra, não é como estar realmente no espaço, continua a ser um ambiente protegido.

Portanto, seriam, no mínimo, dois ou três anos?

Teria de fazer as contas. Hipotetica­mente será mais difícil ir lá e voltar. É natural que tivesse a duração de pelo menos um ano.

Sei que na Estação Espacial Internacio­nal alguns astronauta­s ficam lá alguns meses, mas, de repente, serão anos…

Scott Kelly esteve lá durante um ano. Quando voltou, reformou-se imediatame­nte [risos]… Por isso, sim, vai ser difícil, mas penso que há indivíduos dispostas a fazê-lo. Há quem esteja pronto para correr o risco de se destruir a si próprio em nome da exploração espacial. Não é uma dessas pessoas? Quando vê em primeira mão, como cientista, as imagens de Marte, não sonha ser astronauta? Considerar­ia isso, pois adoraria a oportunida­de de ir a Marte. Há lugares em Marte onde sinto que podia fazer uma visita guiada, tipo “conheço estas pedras tão bem…” Mas sim, é uma grande aventura. Outra coisa é que a maior parte do tempo será passado à espera, quietos, e como é que se lida com isso? Há muitos aspetos psicológic­os com o facto de viver em espaços limitados com muita proximidad­e…

Sem atividades, só à espera… Não, na Estação Internacio­nal eles mantêm-nos ocupados. Certificam-se de que todo o nosso dia está planeado, porque sem atividades as pessoas… Para um astronauta, todos os segundos do dia estão ocupados a fazer qualquer coisa. Em Marte não seria diferente.

“Tenho de dizer que tanto o livro O Marciano como o filme Perdido em Marte que inspirou são incrivelme­nte precisos em muitos aspetos.”

“O maior problema em Marte é como é que vamos proteger as pessoas da exposição à radiação, pois se vamos pôr lá humanos, eles irão correr riscos, vão ter uma alta taxa de cancro, isso é um facto.”

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