O francês que trouxe a Eric Kayser para Portugal e se apaixonou por Lisboa
Uma conversa – e um passeio – sobre ser francês e viver em Portugal com Julien Letartre, acabado de ser eleito um dos quatro conselheiros franceses em Portugal. As diferenças e semelhanças, a política e o projeto Casa France, que pretende juntar mais os dois povos. Apenas o futebol ficou fora da conversa.
Écada vez mais frequente ouvir falar francês em alguns bairros de Lisboa. E não são turistas. São franceses que escolheram Portugal para viver, o que continua a acontecer desde há vários anos. Segundo dados estatísticos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, são a maior comunidade de europeus a viver em Lisboa, em 2020 eram 7 906 os gauleses registados na capital portuguesa (de um total de 24 935 em todo o país), e poderão existir mais. Estudam, trabalham e montam negócios. Como Julien Letartre, 48 anos, natural de Lille, que recentemente foi eleito, pelos gauleses que vivem em Portugal, como um dos quatro conselheiros franceses em terras lusas. É também o homem que convenceu, há uma década, o prestigiado chef pasteleiro francês Eric Kayser a abrir lojas em Portugal. E, desde então tem dado a conhecer o pão que os franceses amassam. A história de Letartre confundem-se com outras, de outros franceses – que são hoje uma das maiores comunidades de estrangeiros a viver em Portugal. Talvez no final deste texto saibamos melhor a razão de tal acontecer.
A conversa com Julien Letartre começa, inevitavelmente, à mesa da Eric Kayser das Amoreiras, a primeira que abriu em Lisboa em 2011. Numa grande mesa de madeira castanha-clara Letartre, mal nos vê entrar, levanta-se, fecha o computador portátil e recebe-nos com sorriso afável. Sem perder tempo, e enquanto nos oferece um café, relembra a sua primeira vinda a Portugal com grande precisão: 1 de fevereiro de 1996. E recorda igualmente que não queria vir. Ele que estudou gestão em Nice, tinha escolhido Madrid para cumprir o serviço militar de dois anos que na altura trocou por um trabalho numa empresa, no caso a Air France. Sem vaga na capital espanhola acabou por vir para Lisboa sem entusiasmo. “Na altura Portugal não era atrativo para os franceses e eu não tinha grande interesse em vir para cá”. Chegou à cidade com uma ideia muito clara: estar dois anos e nada mais. Mas a vida trocou-lhe as voltas.
“Ao chegar tive logo uma ligação muito grande com a cidade e com a sociedade portuguesa”, justifica com o facto de ser do norte da França onde lá, tal como cá, há “um grande sentido de famílias, das crianças e dos avós, e a referência de existir alguém que conhece sempre alguém”.
A somar a isso, o coração fez o resto. Conheceu a mulher, portuguesa de origem goesa, na mesma empresa. Estão casados há vinte anos e têm quatro filhos – uma rapariga e três rapazes.
Com as suas voltas trocadas foi ficando por Lisboa. Conta que na altura “era muito cedo para ir embora com a mulher e já muito tarde para ir sem ela”. Depois a vida profissional levou-o, em família, para Espanha, por breves tempos, e depois regressou a Paris. Onde viveu oito anos. Até
que um dia, a mulher fez saber a grande vontade de voltar a Lisboa, Desta vez Letartre aceitou sem grandes dúvidas apenas com uma certeza: queria montar um negócio. E trouxe a Eric Kayser. A razão da escolha é mais simples do que se pensa: aponta para uma razão muito simples, a falta de bom pão em Portugal. “Sentia a falta do bom pão em Lisboa. Apesar da cultura fantástica do pão que existe em Portugal, na altura, há 10 anos, só existiam carcaças ou produtos muitos industrializados”.
Assim, e como hoje se sabe, a Eric Kayser, padaria muito conhecida em Paris (hoje está por toda a França), abria em Lisboa em 2011, precisamente no local onde nos conta estes detalhes. Hoje são cinco lojas e ainda o abastecimento de hotéis e chefs como José Avillez. “Produzimos tudo localmente. E se nos primeiros cinco anos tivemos chefs franceses a dar formação, agora são só portugueses, são ao todo 80 pessoas”, sublinha.
Tascas, favas e bacalhau
Com o cheiros do pão e dos croissants já para trás, caminhamos com Letartre pelas ruas de Campo de Ourique. Talvez pela proximidade do Liceu Francês ou pela identidade burguesa e boémia, tão queridas entre os franceses, é tal como Campolide e da Lapa, um dos bairros mais adotado pelos franceses. A frequência com que se ouve a língua francesa nas ruas é uma constante.
“Conheci poucos franceses que não se deram bem em Portugal. A maioria aprecia muito a qualidade de vida de cá e a ternura que há nas relações. As pessoas são muito simpáticas umas com as outras”, explica acrescentando sem perder fôlego que os franceses talvez tenham reencontrado aqui as ligações sociais que existiam em Paris há 30/40 anos. “Paris é uma cidade linda, fantástica, mas é muito seca, as relações são secas, é muito cada um na sua. Aqui em Lisboa, há tempo para viver. É uma cidade mais humana”
Ao passar a porta de vários restaurantes do bairro a conversa rapidamente deriva para a comida, um assunto sério para portugueses e franceses. “Adoro a comida portuguesa sobretudo a das tascas, das favas ao bacalhau”E gosta de vinhos portugueses, sobretudo do Dão e Douro. “Por cá só compro vinhos portugueses, os vinhos franceses bebo-os em França”.
Em plena rua Ferreira Borges passamos à porta da queijaria Maître Renard, negócio criado por franceses Letartre, reforça a ideia de integração bem sucedida, “vejo os franceses muito bem integrados a criarem ou trazer negócios de França”, o Talho do Campo, na rua Correia Teles, no mesmo bairro faz os cortes da carne à francesa mas com carne portuguesa, é outro exemplo que vem à baila.
Sem combinar, e na caminhada rumo ao Jardim da Estrela, outro local adotado pelos franceses, Letartre para para conversar com amigos que abriram um restaurante de baggels numa rotunda bem perto da casa museu Fernando Pessoa.
Repetem, os amigos franceses, a viver em Lisboa há um par de anos, como é bom viver em Portugal apesar do pouco dinheiro que os portugueses têm disponível para gastar. Recordam a mossa que a pandemia ainda faz na restauração. Resignados mas com sorrisos apontam para o sol português e explicam que o bom tempo compensa quase tudo.
Despedidas afáveis feitas em francês – podíamos estar num café do bairro parisiense do Marais –, regressamos ao passeio e à conversa. A integração pessoal é menos cor de rosa que a dos negócios. “A cultura portuguesa é muito intima. As famílias e os amigos conhecem-se desde sempre e passam muito tempo juntos e não é fácil para um estrangeiro entrar nesses círculos”, conta Julien Letartre. Caso para soletrar a canção que Amália Rodrigues deu voz: Lisboa Não Sejas Francesa? Nem tanto, há muitas referências culturais entre os dois países. “Há muitos pessoas, hoje com 50 e 60 anos que falam lindamente francês e a influência do Liceu Francês na economia portuguesa é fantástica. As duas culturas estão intrinsecamente ligadas”.
Mesmo assim há diferenças que causam estranheza a um francês. “O que é mais surpreendente é a capacidade dos portugueses nunca dizenota rem não”, explica a sorrir. Mas há mais. “Os atrasos são outro problema. Pessoalmente ponho na pontualidade uma parte da minha educação, como dizemos em França, e “la politesse du roy” – ou seja o rei francês chegava a sempre a horas aos seus compromissos por respeito aos outros. Contudo, em Portugal não sequer é uma questão de respeito, sublinha Letartre “combina-se sempre pelas e não às”. E por fim dá da burocracia que por vezes dificulta muito a vida de quem não domina a língua, mas nem isso faz irritar Letartre: “parto do princípio de que sou eu que venho de fora e sou eu que me tenho de adaptar à cultura e por isso nunca fico enervado ou zangado”.
A Casa France
Julien Letartre como foi já referido foi eleito, a 30 de maio, um dos quatro conselheiros dos franceses que vivem em Portugal. Explica o seu novo papel – “a diplomacia é feita pela Embaixada, a nós, conselheiros, cabe-nos o papel de estar em contacto regular com a comunidade francesa que aqui vive e ser um porta-voz dessa comunidade junto da Embaixada” – com um mandato para os próximos cinco anos e que tem ainda como objetivo facilitar a integração e criar a mais inovadora comunidade francesa no estrangeiro. Isso quer dizer? “Queremos desenvolver uma educação fora de série, queremos que a inclusão e a integração sejam muito fortes. E, no caso de dificuldades sociais possamos ajudar os franceses, porque há muita diversidade dos que vivem em Portugal e nem todos têm poder económico”, explica. E, à parte do mandato, Letartre tem o desejo de criar a Casa France – assim mesmo a misturar as duas línguas.
Enquanto procuramos um banco já no jardim da Estrela e antes de explicar o que essa a Casa France, encontra mais franceses conhecidos. Professores do Liceu Francês com uma turma de crianças numa aula ao ar livre na relva do jardim. Mais uma troca de cumprimentos e sorrisos entre Letartre e os seus conterrâneos, como um encontro entre amigos numa aldeia, no grupo está uma da professora que conhece e vive em Lisboa há mais de vinte anos, diz-nos.
Sentados finalmente, Letartre, entusiasma-se com a ideia da Casa France e explica-a. “Vai ser um espaço físico e também virtual onde se irão juntar a maioria das iniciativas dos franceses em Portugal. Queremos criar, entre outras coisas, uma plataforma social para ajudar franceses que tenham alguma dificuldade e para quem a língua é uma barreira. Queremos montar um espaço de cowork, e não só para os franceses também para os portugueses e queremos ajudar quem queira ir estudar ou estagiar em França, não vamos ser uma aldeia gaulesa em Lisboa, mas sim um espaço aberto onde todos serão muito bem-vindos. E queremos que seja uma coisa que dure para os nossos filhos, que perdure”.
Virtualmente irá arrancar em breve, sublinha, o espaço físico que espera ver inaugurada no início de 2023, ainda sem local definido.
“Somos um país de mimados”
Quase a terminar a conversa, a política francesa e vem à baila, sobretudo com o crescimento da extrema-direita nos últimos anos. Com o barulho de fundo das crianças a brincar em francês e os sinos da Basílica da Estrela a tocarem, Letartre explica a sua preocupação com o que se passa no seu país. “A eleição de Emmanuel Macron há quatro anos veio transformar profundamente a paisagem política francês. Ele e o seu movimento fez implodir quer a direita quer a esquerda e, infelizmente, já não há ninguém com voz nesses campos, e isso veio fortificar os extremos. Tenho receio que nas próximas eleições presidenciais [2022] a segunda volta seja entre Macron e um extremista ou até mesmo entre dois extremistas. Isso inquieta-me”. Ao porquê destes extremos, Letartre responde com autocrítica “Uma das características dos franceses é queixarmo-nos sempre. E visto do exterior não se consegue perceber. E quando vou a França e oiço a minha família a queixar-se de falta de apoios dá-me vontade de rir quando comparado com a realidade portuguesa. Somos um país de mimados. Dito isto, há que sublinhar que a classe média francesa sofreu imenso e pela primeira vez os filhos não têm tanto dinheiro como os seus pais e não conseguem ver que futuro terão os seus filhos isso cria muita frustração e dá azo ao crescimento dos extremos”.
Contudo, e apesar de não ser pró-Marcon, dá nota positiva ao trabalho do presidente sobretudo na gestão da pandemia, e dá a mesma nota ao primeiro-ministro português. “Não sou de esquerda, mas António Costa está a fazer um bom trabalho com a pandemia”. Continuado em Portugal diz não perceber o Chega. “Portugal sempre foi um país aberto, tolerante, chateia-me ver chegar este tipo de extremismo e assusta-me, tanto aqui como em França. Temos de ter cuidado, é uma tendência de fundo”.
Antes do à bientôt (até breve) a última pergunta: o que tem mais de português ao fim destes 10 anos? “A empatia. Acho que já tinha isto em mim mas desenvolvi mais ao viver aqui para mim a linguagem do coração é o mais importante e em Portugal fala-se primeiro ao coração e depois à razão. Nisso estou a ficar muito português”.
Campo de Ourique, talvez pela proximidade do Liceu Francês ou pela identidade burguesa e boémia, tão queridas entre os franceses, é um dos bairros mais adotado pelos franceses. A frequência com que se ouve a língua francesa nas ruas é uma constante. “O que é mais surpreendente é a capacidade de os portugueses nunca dizerem não”, explica.