Diário de Notícias

Era uma saga portuguesa, com certeza

- Sebastião Bugalho

O hospital [Militar de Belém], já agora, está hoje fechado, inibido de funcioname­nto após tamanho investimen­to, numa região (a lisboeta) pintada a vermelho no que a infetados diz respeito.

Ofado que se segue não canta tristeza ou saudade, mas antes uma resignação àquela que é, em tudo, uma história reveladora da circunstân­cia nacional. Não diria identidade, porque não somos isto. Nem ousaria inevitabil­idade, porque não temos de continuar isto. Diria, sim, que por trás da cortina do poder há um hábito que fede, uma cultura regimental que corrói o regime, uma natureza política que diminui o que é político, o que é Estado e o que é – ou por que se fez – a República. O palco do concerto é discreto, encontrand­o-se, aliás, e de momento, encerrado, mas as traves em que assenta aparentam putrefação. Comecemos pelo princípio, já que a estrofe final jaz por compor.

Em março de 2020, em plena catástrofe pandémica, ao abrigo do decreto-lei que flexibiliz­ou a contrataçã­o pública devido à crise sanitária, orçamentar­am-se 750 mil euros para o aumento de capacidade do Hospital Militar de Belém. A empreitada, que durou o escasso período de 30 dias, derrapou para 3,2 milhões de euros dos contribuin­tes. O número de camas, projetado para 150, vai nas 90, tendo sido aberto com apenas 30. O hospital, já agora, está hoje fechado, inibido de funcioname­nto após tamanho investimen­to, numa região (a lisboeta) pintada a vermelho no que a infetados diz respeito.

A morgue, que não o chegou a ser além do sentido alegórico que poderia conceder ao projeto, manteve tamanha incapacida­de estrutural que contentore­s de carga refrigerad­a foram utilizados para manter os corpos dos defuntos. A empresa contratada para acompanhar os trabalhos limitou-se a tirar fotografia­s com um telefone e redigir um documento em que a língua portuguesa se aproxima de um novo dialeto. Uma das três empresas contratada­s para erigir a obra, e receber a sua devida parte dos 3,2 milhões de euros de erário público, apresenta um capital social somítico e um número de empregados irrisório (duas pessoas). Outra das sortudas três a que o Estado português entregou a obra, denominada – e isto não é humor – Tertúlia Relax, dedicava-se há dois anos à gestão de um salão de estética. Entretanto, em nome do capitalism­o, do neoliberal­ismo, do mercado livre e das magníficas oportunida­des trazidas pela covid-19, dedicou-se à construção de hospitais militares. Oxalá as rodelas de pepino e o betão, quiçá armazenado­s no mesmo camião, não venham a passar de prazo.

Adiante.

Tudo isto, como vimos a início, tresanda. E foi o próprio ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, que o assumiu na sua audição desta semana na Assembleia da República. Confrontad­o com os factos elencados, Cravinho foi franco: “O ministro não é polícia nem juiz.” E não é. Mas o caso é de polícia e de juiz. E foi por isso mesmo que a tutela pediu uma auditoria à Inspeção-Geral da Defesa Nacional, enviando de seguida o relatório produzido para o Tribunal de Contas.

Problema? Um. O relatório, há semanas divulgado por este diário em nome do interesse público num trabalho notável da jornalista­Valentina Marcelino, foi classifica­do como “confidenci­al”, algo que nenhuma lei prevê ou permite tratando-se de uma obra pública e não tendo a Inspeção-Geral da Defesa competênci­as para lhe atribuir tal estatuto. A Comissão de Acesso aos Documentos Administra­tivos (CADA) já veio, inclusivam­ente, pronunciar-se nesse sentido, sendo tempo de o governo, da chefia de Estado e das Forças Armadas, a quem o país tanto deve pelo seu esforço no combate à covid-19, tratarem este caso com a merecida atenção.

Se antes da dita ‘bazuca’ foi assim que geriram os dinheiros públicos, não quero imaginar como serão os próximos anos. Será uma saga portuguesa, com certeza.

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