Era uma saga portuguesa, com certeza
O hospital [Militar de Belém], já agora, está hoje fechado, inibido de funcionamento após tamanho investimento, numa região (a lisboeta) pintada a vermelho no que a infetados diz respeito.
Ofado que se segue não canta tristeza ou saudade, mas antes uma resignação àquela que é, em tudo, uma história reveladora da circunstância nacional. Não diria identidade, porque não somos isto. Nem ousaria inevitabilidade, porque não temos de continuar isto. Diria, sim, que por trás da cortina do poder há um hábito que fede, uma cultura regimental que corrói o regime, uma natureza política que diminui o que é político, o que é Estado e o que é – ou por que se fez – a República. O palco do concerto é discreto, encontrando-se, aliás, e de momento, encerrado, mas as traves em que assenta aparentam putrefação. Comecemos pelo princípio, já que a estrofe final jaz por compor.
Em março de 2020, em plena catástrofe pandémica, ao abrigo do decreto-lei que flexibilizou a contratação pública devido à crise sanitária, orçamentaram-se 750 mil euros para o aumento de capacidade do Hospital Militar de Belém. A empreitada, que durou o escasso período de 30 dias, derrapou para 3,2 milhões de euros dos contribuintes. O número de camas, projetado para 150, vai nas 90, tendo sido aberto com apenas 30. O hospital, já agora, está hoje fechado, inibido de funcionamento após tamanho investimento, numa região (a lisboeta) pintada a vermelho no que a infetados diz respeito.
A morgue, que não o chegou a ser além do sentido alegórico que poderia conceder ao projeto, manteve tamanha incapacidade estrutural que contentores de carga refrigerada foram utilizados para manter os corpos dos defuntos. A empresa contratada para acompanhar os trabalhos limitou-se a tirar fotografias com um telefone e redigir um documento em que a língua portuguesa se aproxima de um novo dialeto. Uma das três empresas contratadas para erigir a obra, e receber a sua devida parte dos 3,2 milhões de euros de erário público, apresenta um capital social somítico e um número de empregados irrisório (duas pessoas). Outra das sortudas três a que o Estado português entregou a obra, denominada – e isto não é humor – Tertúlia Relax, dedicava-se há dois anos à gestão de um salão de estética. Entretanto, em nome do capitalismo, do neoliberalismo, do mercado livre e das magníficas oportunidades trazidas pela covid-19, dedicou-se à construção de hospitais militares. Oxalá as rodelas de pepino e o betão, quiçá armazenados no mesmo camião, não venham a passar de prazo.
Adiante.
Tudo isto, como vimos a início, tresanda. E foi o próprio ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, que o assumiu na sua audição desta semana na Assembleia da República. Confrontado com os factos elencados, Cravinho foi franco: “O ministro não é polícia nem juiz.” E não é. Mas o caso é de polícia e de juiz. E foi por isso mesmo que a tutela pediu uma auditoria à Inspeção-Geral da Defesa Nacional, enviando de seguida o relatório produzido para o Tribunal de Contas.
Problema? Um. O relatório, há semanas divulgado por este diário em nome do interesse público num trabalho notável da jornalistaValentina Marcelino, foi classificado como “confidencial”, algo que nenhuma lei prevê ou permite tratando-se de uma obra pública e não tendo a Inspeção-Geral da Defesa competências para lhe atribuir tal estatuto. A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) já veio, inclusivamente, pronunciar-se nesse sentido, sendo tempo de o governo, da chefia de Estado e das Forças Armadas, a quem o país tanto deve pelo seu esforço no combate à covid-19, tratarem este caso com a merecida atenção.
Se antes da dita ‘bazuca’ foi assim que geriram os dinheiros públicos, não quero imaginar como serão os próximos anos. Será uma saga portuguesa, com certeza.