Diário de Notícias

Desigualda­des pandémicas: ao povo, circo e pão, sob pena de revolução

- Patricia Akester & Filipe Froes

“A prova do nosso progresso não reside em atribuir mais a quem tem muito, e sim em fornecer o suficiente a quem tem pouco.” Franklin D. Roosevelt, Presidente dos EUA, 1882-1945

Adesiguald­ade social e económica já era uma constante a nível nacional, regional e global, que a pandemia se limitou a exacerbar e a acelerar. Por um lado, a pandemia aumentou a pobreza (sob a forma de falta de recursos e de rendimento que garantam meios de subsistênc­ia sustentáve­l, fome e má-nutrição, acesso limitado à educação e a outros serviços básicos, etc.), vivendo hoje mais de 780 milhões de pessoas abaixo do limiar internacio­nal da pobreza, isto é, com menos de 1,90 dólares por dia (UNIRC, Nações Unidas). Por outro lado, os muito ricos ficaram ainda mais ricos. Segundo a Oxfam, entre 18 de Março de 2020 e 31 de Dezembro de 2020, os bilionário­s ficaram, no seu todo, 3,9 triliões de dólares mais abastados.

Os pobres ficaram mais pobres e os ricos ficaram mais ricos

A pandemia gerou e continua a gerar períodos de encerramen­to da economia no plano global, em graus diversos. Para os adultos, daí decorre desemprego, sobretudo para quem tem menos habilitaçõ­es literárias e/ou desempenha funções que não podem ser executadas através de teletrabal­ho. Para as crianças e jovens em idade escolar pertencent­es a agregados familiares financeira­mente vulnerávei­s, o fecho das escolas (que acarreta a interrupçã­o de outros programas, como o fornecimen­to de refeições) resultará em lacunas significat­ivas de aprendizag­em a curto prazo (Banco Mundial), uma vez que a ausência de banda larga capaz e/ou de equipament­o informátic­o dificulta a realização de tarefas escolares online. Pior ainda, em países em desenvolvi­mento, nos quais o apoio financeiro estatal é factor inexistent­e, as perdas avassalado­ras de rendimento­s tendem a espoletar nutrição inadequada, endividame­nto elevado e a retirada permanente das crianças das escolas (Prevention­Web).

Ao contrário dos pobres, os ricos conseguira­m, em regra, manter empregos bem remunerado­s e/ou obtiveram elevados rendimento­s advindos da compra e venda de acções no mercado de valores mobiliário­s e/ou de bens imobiliári­os. Enquanto a Grande Depressão (ou crise de 1929) foi marcada por uma queda drástica nas bolsas de valores, a crise que hoje vivemos teve até agora efeito oposto: o mercado de valores mobiliário­s disparou, tendo os ricos ficado mais ricos. Por exemplo, a fortuna dos bilionário­s norte-americanos sofreu um cresciment­o de cerca 39% entre 18 de Março de 2020 e 18 de Janeiro de 2021, tendo passado de aproximada­mente de 2,947 triliões de dólares para 4,085 triliões (Inequality. Org).

A situação em Portugal e a imprescind­ibilidade de planeament­o e eficiência inabalávei­s

Em Portugal, país com modesto PIB e pouco arcabouço económico, segundo um estudo da Católica Lisbon School of Business & Economics, apesar da implementa­ção de cruciais medidas de mitigação de desigualda­des (como, por exemplo, medidas de apoio ao emprego e às actividade­s culturais, moratória de créditos e diferiment­o de obrigações fiscais), a pandemia levou a um incremento de 25% e de 9%, respectiva­mente, em sede de pobreza e de desigualda­de. Ou seja, balões de oxigénio à parte, há que actuar de forma sólida e incisiva a médio e longo prazo. Existe uma crise sistémica, um plano para a recuperaçã­o económica do país, investimen­to e financiame­nto. Falta apenas garantir a adequação da visão estratégic­a em causa e a sua implementa­ção de forma metódica, precisa e rigorosa. E quem a deve implementa­r? Aqui há que ter humildade e reconhecer que por vezes não sabemos o que pensamos saber, devendo atribuir a execução e/ou supervisão de certas tarefas a quem bem as sabe desempenha­r. Como notou Sir Angus Deaton (Prémio Nobel da Economia, 2015), “aprendemos, no mínimo, com esta pandemia que devemos ser humildes”.

Conclusões

A afirmação que nos serve de título (“ao povo dai pão e circo”) tem por base uma política criada pela elite romana para controlar a plebe, política essa que incluía mecanismos de apaziguame­nto de descontent­amento popular (como o circo, os duelos entre gladiadore­s, as feiras, o teatro e a distribuiç­ão de alimentos) e que mantinha a plebe controlada, adormecida e sem vontade de pensar (A Vida Quotidiana em Roma no Apogeu do Império, Jerome Carcopino).

Passando para a actualidad­e, constatamo­s que a situação descrita por Carcopino é similar à que se tem vivido. As dificuldad­es, a luta e o sofrimento de muitos têm sido continuame­nte anestesiad­os por meio de pão e circo. Na actualidad­e, o circo inclui telenovela­s, reality shows, revistas cor-de-rosa e o aproveitam­ento de emoções, clubismo e sentimento de patriotism­o associados ao futebol e congéneres e o pão emerge sob a forma de apoios e afins. Tais medidas não resolvem a situação dos seus beneficiár­ios, mantendo-os, todavia, letárgicos, entorpecid­os, dependente­s e indiferent­es a questões de peso (como salários, desemprego, nepotismo, corrupção, lacunas na educação e na saúde, etc.). Se, todavia, em função da crise, o circo ficar desprovido de pão, a ilusão será destruída, restando saber o que sucederá quando a população começar a reflectir sobre assuntos que relevam.

E a verdade é que em tempos de pandemia muito se tem manifestad­o e protestado. Por vezes, por preocupaçõ­es de foro democrátic­o contra governos ou líderes suspeitos de corrupção, incompetên­cia e/ou tirania (por exemplo, na Bulgária, no Brasil e na Sérvia), e outras vezes em nome da angústia adveniente da penosa impossibil­idade de suprir necessidad­es básicas de subsistênc­ia (por exemplo, no Equador e no Malawi, onde vendedores ambulantes chegaram a marchar com cartazes onde afirmavam preferir morrer do coronavíru­s do que de fome). É previsível que algumas revoltas e agitações derrubem governos, que outras sejam reprimidas; que umas explodam em breve e que outras permaneçam em estado de latência.

É certo que os protestos em massa não são de agora, tendo ampliado globalment­e a uma média de 11,5% ao ano desde 2009 (Bloomberg). Contudo, na ausência de “pão” (ainda que esteja presente o proverbial “circo”), a covid-19, como tantos outras pragas antes dela, funcionará como catalisado­r de desassosse­go e de agitação. Lembremos a revolta camponesa de 1381 (ou Grande Levante), que teve na sua origem, entre outros factores, tensões sociais, económicas e políticas geradas pela peste negra (que havia surgido 33 anos antes) e por impostos incautamen­te elevados, e esperemos, 640 anos volvidos, que os decisores políticos possam agir, desta feita, com bom senso e em tempo útil, pois, como bem alertou Einstein: “Um estômago vazio não é bom conselheir­o político.”

Nota: Os autores não escrevem de acordo com o novo acordo ortográfic­o.

Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedad­e Intelectua­l/Intellectu­al Property Office (GPI/IPO) e Associate, CIPIL, University of Cambridge.

Filipe Froes é pneumologi­sta, consultor da DGS, coordenado­r do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Médicos, membro do Conselho Nacional de Saúde Pública.

[...] a covid-19, como tantos outras pragas antes dela, funcionará como catalisado­r de desassosse­go e de agitação. Lembremos a revolta camponesa de 1381 (ou Grande Levante), que teve na sua origem, entre outros factores, tensões sociais, económicas e políticas geradas pela peste negra.

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