SARS-CoV-2 é o vencedor do Inglaterra-Itália
Pudesse o vírus escolher países para mais um superevento de contágio e talvez escolhesse estes dois, cuja história negra vem desde o início da pandemia. Itália exponenciou em fevereiro de 2020 o SARS-CoV-2 vindo da China, Inglaterra introduziu-lhe mais tarde a variante alfa. Hoje reúnem-se na final do Euro, propulsionando mais uma avalanche de casos nas próximas semanas, depois de milhares e milhares de mortes ficarem esquecidas como se tivessem sido há um século. Tudo patrocinado pela mais irresponsável das organizações europeias, a UEFA, cuja ganância na venda de bilhetes gerou uma imagem global de multidões sem máscara amontoadas nos estádios. Não há dúvida de que a pandemia e o confinamento tornaram altamente seletiva a nossa memória e anestesiaram a luta contra o descaramento.
Para que não nos esqueçamos: já a pandemia dava sinais graves, e mesmo assim disputou-se o jogo da Liga dos Campeões entre o Atalanta-Atlético de Madrid, em fevereiro de 2020. Depois aconteceu isto: Bérgamo e Madrid foram as regiões onde a covid-19 mais colapsou os sistemas hospitalares. As filas de camiões militares à espera de recolher corpos em Bérgamo e as morgues sem espaço para cadáveres em Madrid ficarão na história.
Há que dar o benefício da dúvida de que, na altura, a UEFA não podia medir as consequências. Mas hoje já sabe e não tirou nenhuma conclusão moral disso. Repete o feito perante a complacência de todos os Estados, apesar da rapidíssima propagação da variante delta.
Este luxo em que vivemos na Europa ignora que apenas 0,4% das vacinas foram distribuídas em países pobres e que apenas 25% da população mundial está protegida. Factos antagónicos que deveriam obrigar os países ricos a liderarem, através da libertação de vacinas, o abrandamento da propagação global do SARS-CoV-2 – essa, sim, a única forma de mudar o curso da história da pandemia. E de se defenderem a si próprios.
O cansaço pandémico existe, as novas gerações não podem ficar eternamente à espera que a pandemia passe, 98% das pessoas não têm formas graves da doença (conhecidas até agora), portanto há um risco gerível... O problema é que o vírus desconhece tudo isso. E avança, se puder. As opiniões públicas ocidentais aceitam a morte de milhões e milhões de pessoas em todo o mundo apenas porque não estão dispostas a gerir mais um ano das suas vidas com precauções modestas e cautelas nos ajuntamentos.
Pede-se que se continue a usar máscara. Que se faça um autoteste por semana nas empresas. Que se mantenha a prudência nos contactos sociais. Que seja usado o ar livre para conviver, agora que é verão. Que não se promovam festas só porque sim.
Não se pede que não se vá trabalhar ou que se deixe de ir à escola. Precisamos de andar em transportes públicos, ir às compras, frequentar a cultura ou os serviços religiosos com lotações definidas pelos regulamentos sanitários, fazer desporto. Já não está em causa não passear ou não estar com a família. Ou seja, apesar de algum risco, uma vida quase normal. Mas não chega. Tem de ser como dantes.
Como diz a Organização Mundial de Saúde, estamos a ser cúmplices de uma “catástrofe moral”. Ora, isto não ficará impune: o vírus não é erradicável e chegará até nós de diferentes formas – ele não faz outra coisa que não seja permanentemente mudar. E isso pode destruir o processo de vacinação já feito. Insistimos em ignorar o principal protagonista desta história: quatro mil milhões de anos provam o sucesso e eternidade dos coronavírus. Somos apenas mais um brevíssimo hospedeiro no seu trajeto.