Perguntas frequentes sobre o Euro 2020 (última semana)
Ora então quem é que foi o melhor jogador do torneio? Há duas maneiras de acumular “grandes exibições” em Europeus e Mundiais: o modo decisivo e o modo dominante. O modo decisivo é aquilo que, por exemplo, Ronaldo fez contra a Espanha em 2018, ou Zidane fez na final do França 98: aparecer nos momentos-chave para definir o resultado final e inscrever triunfantemente o nome na ficha de jogo. O modo dominante é mais raro: quando um futebolista não se limita a deixar a sua marca no jogo, mas parece determinar em tempo real a sua trajectória e o seu significado, como se fosse um narrador participante e omnisciente – o mesmo Zidane teve um jogo assim nos quartos-de-final do Mundial de 2006 (outra vez contra o Brasil, curiosamente); Pirlo passou o Euro 2012 inteiro a ter jogos assim; Xavi passou metade da vida adulta a ter jogos assim.
Não houve um candidato óbvio a este modo de domínio no Euro 2020, até porque os jogadores que estiveram mais próximos – Jorginho e Pedri – têm estilos de jogo tão diáfanos que aplicar-lhes a palavra “domínio” é quase obsceno. Mas Pedri, um cidadão espanhol com um metro e trinta de altura, dezanove quilos de peso e onze anos de idade, foi o melhor exemplo de coerência em movimento em todo o torneio – o que melhor soube descodificar o borrão cognitivo de ângulos não-familiares e emergências locais em que cada jogo se desmancha e o que melhor conseguiu sequestrar essa geometria de imprevisibilidade dentro dos limites confortáveis que ele próprio escolheu. Como os melhores médios da geração e meia que o precedeu – Xavi, Iniesta, Pirlo, Modric –, o seu jogo transforma a leitura panóptica de coreografias acidentais numa espécie de horóscopo secreto que só ele conhece. Foi um dos prazeres constantes do Euro 2020 e será, se tivermos sorte, um dos prazeres constantes da próxima década e meia de futebol.
Dito isto, se a opção for premiar o modo decisivo, a escolha óbvia é Sterling.
Sterling, santíssimo sacramento, a sério? Ainda bem que me faz essa pergunta. Não deixa de ser um sinal do apocalipse que um jogador inglês, e ainda por cima um jogador tão fundamentalmente pouco imaginativo como Sterling, seja tão importante numa competição séria, mas é este o mundo em que vivemos, e o mundo em que vivemos gosta de decompor a beleza do futebol neste tipo de ambiguidades: todos sabemos que Raheem Sterling é um excelente futebolista, mas nenhum de nós tem 100% de certeza que ele não seja um nabo, ou pelo menos recusa aceitar essa possibilidade sem hesitações. Isto tem a ver com a tensão ancestral entre criatividade e eficácia que coordena quase todos os debates mais interessantes ou desinteressantes sobre a modalidade. Ao descrevermos um excerto prolongado de futebol como “bem jogado”, estamos quase sempre a reconhecer que um jogador, ou um conjunto de jogadores, parece ter feito várias coisas consecutivas propositadamente, instrumentalizando o caos para gerar e acumular microvantagens. Mas há um certo tipo de jogador cujas acções parecem querer revogar a desordem intrínseca do jogo sem, ao mesmo tempo, terem a dignidade de a explicar, como fazem os Messis, Xavis e Iniestas, como fazem os Pedris e Jorginhos. São jogadores normalmente investidos em negócios de volume e margens reduzidas, que sabem que, se usarem a mesma vantagem evolutiva muitas vezes seguidas, mais tarde ou mais cedo essa vantagem vai produzir resultados. Estes jogadores são normalmente decisivos, mas também são normalmente mantidos à margem de discussões mais estéticas, porque se subentende uma deselegância no princípio da coisa. Lampard e Gerrard eram esse tipo de jogador. Bruno Fernandes é este tipo de jogador, ainda que por vezes saiba ser outro; Cristiano Ronaldo não é, mas jogou os cinco ou seis melhores anos da sua carreira como se fosse. Sterling é, e não sabe ser outra coisa. E, bem ou mal, o seu método de correr muito depressa em linha recta 15 vezes por jogo, 14 delas sem qualquer efeito prático, levou a Inglaterra à final de um Europeu pela primeira vez na sua história.
Este formato com 24 equipas, que depende de apurar os melhores terceiros classificados, dilui a emoção da fase de grupos? A lista de coisas que “matam a emoção” do futebol cresce de ano para ano e de geração em geração, com a confiança de qualquer categoria conceptual que acredita piamente ter tido a pontaria cronológica de aparecer num ponto de viragem histórica. Isto quase nunca é verdade – excepto quando é – e quase nunca há interesse em propor essa tese – excepto quando há. O argumento contra este formato específico é, ainda assim, invulgarmente débil e depende de um conjunto de objecções teóricas que se aplicam a qualquer outro formato (a possibilidade de equipas chegarem à terceira jornada já sem nada em jogo, por exemplo). Mas se o mesmo formato nos deu uma das competições mais icónicas e memoráveis da história do jogo (o México 86) e também uma das mais celebremente negativas (o Itália 90), se calhar nem o mérito nem a culpa pertencem ao formato.
Um exercício comparativo:
- a fase de grupos do Euro 2012 (o último com 16 equipas, no “emotivo” formato anterior) terminou com um soporífero 1-0 da Inglaterra à Ucrânia e com um Suécia-França em que uma França já apurada aproveitou para descansar alguns titulares e perdeu com uma Suécia já eliminada;
- no último dia da fase de grupos do Euro 2020, as oito equipas entraram todas em campo com hipóteses de se apurar, houve reviravoltas sucessivas – no marcador e nas tabelas –, incerteza até aos últimos segundos e marcaram-se 18 golos em quatro jogos.
Um holocausto de emoção, portanto, em teoria e na prática.
O futebol está, portanto, de regresso a casa? Exacto: como as andorinhas de regresso a San Juan Capistrano ou dirigentes desportivos de regresso à cadeia, eis que o futebol regressa ao seu berço e destino, 500 mil séculos depois de ter sido inventado em
Oxford, num domingo à tarde, pelo Duque de Futebol.
Devemos estar muito preocupados?
Com certeza. Num passado não muito remoto, sabíamos sempre o que esperar da selecção inglesa em torneios internacionais – e sabíamos o que esperar porque tudo já aconteceu imensas vezes. Tipicamente precedida por uma epopeia de histeria milenarista alimentada pela imprensa tablóide, a participação inglesa começava com esperanças exorbitantes, tropeçava nas primeiras exibições catatónicas e terminava fatalmente antes da final, num trágico desempate por penáltis, quase de certeza contra alemães ou contra o Ricardo, antes de uma curta mas empolgante maratona de assassínios de carácter em jornais e debates televisivos intermináveis subordinados ao tema “O Pequeno-Almoço Inglês vs. o Pequeno-Almoço Continental”.
Uma das ilusões inescapáveis do futebol é a de que há sempre uma razão concreta para as coisas acontecerem de maneira diferente, mas a Inglaterra de 2021 não foi diferente de Inglaterras recentes, embora exibam uma disciplina posicional talvez nunca vista na selecção (que durante duas décadas defendeu e pressionou como uma colecção de indivíduos a tentar desesperadamente invalidar um trocadilho do Daily Mirror na manhã seguinte).
Mas continua a ser uma equipa narcotizante, mesmo quando depende quase exclusivamente da velocidade: depois de cometerem erros no ataque (sempre cometidos muito depressa), toda a equipa recua em bloco (muito depressa) a tempo de ver os adversários cometer os seus próprios erros. É um sistema eficaz quando há pelo menos uma pessoa em cada sector capaz de correr mais depressa que as outras, como é o caso de Walker, Phillips e Sterling – que podia perfeitamente, já agora, ser o nome de uma sociedade de advogados. Até as reservas estratégicas de espontaneidade atípica que os seleccionadores ingleses costumam ser obrigados a trazer a estes torneios (a deste ano tem a pitoresca designação de “Grealish”) não têm tido grande destaque. Na verdade, de todos os obstáculos que costumam atrapalhar a Inglaterra nestas competições, a Inglaterra preservou apenas um: ser a Inglaterra. Esperemos, para bem do futebol, que seja suficiente.
O futebol está, portanto, de regresso a casa? Exacto: como as andorinhas de regresso a San Juan Capistrano ou dirigentes desportivos de regresso à cadeia, eis que o futebol regressa ao seu berço e destino.