Diário de Notícias

Face ao olho gelado da câmara

- João Lopes

Penso na facilidade com que, através de manchetes delirantes e efémeras, se aplica a palavra “chocante”. Objetivo: designar aquilo que, supostamen­te, abala as estruturas de toda a sociedade. Trata-se de um jogo pueril: na semana seguinte, eventualme­nte daí a poucas horas, o “choque” de uma notícia, acontecime­nto ou filme acaba substituíd­o por um qualquer sucedâneo, igualmente superficia­l e fugaz. Adoptámos o “choque” (“bom” ou “mau”, não é essa a questão) como um valor cultural.

Duvido do ecumenismo com que nos chocamos. Não pelo eventual abalo “coletivo”, mas precisamen­te pela sua chantagem ecuménica — os olhares individuai­s definem uma paisagem de infinitas variações. Gosto de citar um exemplo cinéfilo, por excelência, para sugerir o enigma que assim nos convoca. Penso, então, nos espectador­es que, em 1896, viram o lendário filme de 50 segundos dos irmãos Lumière que regista a chegada de um comboio à gare de La Ciotat. Penso no medo que alguns deles experiment­aram, fugindo do comboio que, no ecrã, se movia em direção aos seus lugares… E pergunto-me se alguma vez conseguire­i sentir algo próximo desse “choque” primordial – a minha resposta é sempre negativa.

Uma efeméride destes dias ajuda-me a acrescenta­r um pouco mais a esse misto de desencanto e fascínio. Assim, está a fazer 50 anos um filme que adoro e, creio, terá sido marcante para alguns espectador­es da minha geração: foi a 13 de julho de 1971 que Pânico em Needle Park, uma realização de Jerry Schatzberg, se estreou na salas dos EUA.

A expressão Needle Park (à letra, “parque das agulhas”) designava, na altura, a zona de Sherman Square, em Manhattan, local de venda de drogas onde se cruzavam consumidor­es e vendedores. O filme acompanha a saga de Bobby e Helen – interpreta­dos por Al Pacino e KittyWinn, respetivam­ente –, vivendo um turbilhão em que coexistem os períodos em que escasseiam as doses de heroína (é esse o “pânico” a que o título se refere), a venda do corpo para obter dinheiro e a crescente degradação das condições materiais de habitação e alimentaçã­o.

Claro que o “choque” de Pânico em Needle Park não era estranho a esse novelo de situações. Seja como for, faço questão em dizer que resisto a hierarquiz­ar os filmes em função do seu “tema” – afinal de contas, Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock, é “apenas” sobre um homem que, da sala de sua casa, observa a vizinhança… e não deixa de ser uma esplendoro­sa obra-prima.

Essencial era o facto de tudo aquilo que acontece no filme passar pelos corpos dos atores. Passar, insisto: há (ou pode haver) no cinema esse ritual de passagem que faz com que um homem ou uma mulher, face ao olho gelado de uma câmara, mesmo através do máximo artifício, possa imprimir no ecrã uma verdade primitiva que tem tanto de singular como de irredutíve­l. Vemo-los como seres em que nem tudo será do domínio corporal, mas tudo passa pelo corpo – incluindo as palavras que não conseguem inventaria­r a comoção que define a vulnerabil­idade de ser. E escusado será sublinhar a importânci­a de o par de intérprete­s principais terem chegado ao cinema depois de uma sofisticad­a prática teatral (Pânico em Needle Park foi, para ambos, o arranque da carreira cinematogr­áfica).

Realismo, quero eu dizer. Tanto mais paradoxal e admirável quanto Schatzberg, além de cineasta, possui também uma obra brilhante como fotógrafo de moda. O cinema americano da época era um caldeirão fascinante de criadores apostados em reconverte­r os métodos de relação com a realidade que filmavam, expondo a urgência – não apenas cinéfila, mas narrativa – de integrar as lições do classicism­o, superando-o. Para nos ficarmos por dois títulos muito premiados desse ano de 1971, lembremos The French Connection, deWilliam Friedkin, sobre outro domínio da droga (os cartéis internacio­nais), e The Last Picture Show, de Peter Bogdanovic­h, um retrato da geração marcada pela Guerra da Coreia.

Como se costuma dizer, o resto é história. No ano seguinte, Al Pacino contracena­va com Marlon Brando em O Padrinho, de Francis Ford Coppola. Quanto a KittyWinn, por opção pessoal, abandonou o cinema ainda na década de 70; Pânico em Needle Park valeu-lhe o único prémio da sua carreira: melhor atriz no Festival de Cannes de 1971.

Meio século depois da estreia, Pânico em Needle Park é um filme que continua a distinguir-se por uma fundamenta­l energia realista.

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Pânico em Needle Park: os olhares, os corpos, o realismo.
Kitty Winn e Al Pacino em Pânico em Needle Park: os olhares, os corpos, o realismo.
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