Estreia da curta-metragem A Voz Humana
Chega nesta semana às salas a curta-metragem de Pedro Almodóvar com Tilda Swinton. A Voz Humana pode ser a enésima adaptação da peça de Jean Cocteau, mas nunca a vimos tão colorida, tão... almodovariana.
N “o currículo de todo o criador deve haver alguns traumas. Naturalmente, eu também os tenho. Um deles é ter trabalhado na cave da Companhia Telefónica durante dez anos.” Este trauma de Pedro Almodóvar vislumbra-se um pouco por toda a parte no seu cinema, e de modo particular em Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos (1988), o filme que realizou numa vigorosa atitude de protesto contra o aparelho: “O telefone só serve para demonstrar ao próximo o pouco interesse que ele provoca. Aconselho a todas as pessoas que esperam inutilmente uma chamada junto a um telefone que atirem o aparelho pela janela.” Ora é isso que a chica Carmen Maura faz no filme, sem poupar o atendedor de chamadas. Por sinal, um filme vagamente inspirado na peça A Voz Humana, de Jean Cocteau, a mesma que já surgia representada em A Lei do Desejo (1986), e que agora, assumindo a transparência do título, Almodóvar recuperou numa adaptação definitiva, naquela que será a sua primeira película em língua inglesa e com uma atriz fora do círculo madrileno: Tilda Swinton.
A britânica cuja variedade de colaborações artísticas vai de Derek Jarman a Apichatpong Weerasethakul, passando porWes Anderson, consumou com o cineasta espanhol uma parceria há muito desejada. E o facto de a rodagem ter decorrido há exatamente um ano, no rescaldo do primeiro confinamento global devido à covid-19, acrescenta uma camada de leitura a esta curta-metragem de meia hora: é também da solidão das quatro paredes que Almodóvar nos fala em A Voz Humana. Estamos, afinal, perante o desgosto amoroso de uma mulher que espera ansiosamente o telefonema do homem que a deixou, enquanto encadeia uma série de gestos de desespero mais ou menos camuflado, apenas na companhia do cão do ex-amante. Vai a uma loja de ferragens comprar um machado (o senhor da caixa é o irmão de Almodóvar, Agustín, nos seus habituais cameos), com esse instrumento ataca um fato de homem disposto em cima da cama, e ela própria troca de roupa como se estivesse pronta para sair.
Porém, não sai logo. O apartamento, decorado segundo as leis do desejo e da estética almodovariana, é o espaço que sublinha o artifício dramático do longo telefonema/monólogo que se vai seguir, numa oscilação de estados de alma entre o fingimento racional, a fragilidade psicológica e a exasperação. É uma mulher transtornada pela dor e pela dita solidão. Uma maravilhosa Tilda à beira de um ataque de nervos.
Cocteau à la carte
Ao longo dos anos, A Voz Humana tem sido levada com regularidade ao cinema e à televisão. Digamos que é um texto-veículo para grandes atrizes. A primeira foi a italiana Anna Magnani em O Amor (1948), um filme de dois episódios – LaVoce Umana e Il Miracolo – realizado por Roberto Rossellini, que marcou o fim da sua relação, mais do que meramente profissional, com o cineasta, então apaixonado pela sueca Ingrid Bergman, tendo também ela interpretado a mesma personagem, em 1966, numa adaptação televisiva de Ted Kotcheff, quando já não estava com Rossellini... Em anos mais recentes foi a vez de uma madura Sophia Loren se agarrar ao telefone com dor aguda, dirigida pelo filho, Edoardo Ponti (em 2014), e ainda Rosamund Pike, numa curta-metragem ultra minimalista do ator Patrick Kennedy (em 2018).
O que é que distingue a interpretação de Tilda Swinton de todas estas, e mesmo cada uma delas? Desde logo, ninguém encarnou o papel como Magnani. Ela é a mais ansiosa e despedaçada, a mais intensa e trágica – Rossellini admitiu ter usado a peça de Cocteau como motivo para a câmara estudar as mudanças de expressão num rosto humano, o dela. Por sua vez, Swinton, longe da tragicidade de Magnani, do romantismo ferido de Loren e da escuridão depressiva de Pike, está mais próxima da afetação de Ingrid Bergman, e Almodóvar combina essa performance simulada com a própria decoração garrida do apartamento. É como se o propósito do cineasta fosse desmontar o tormento emocional através da circulação de Swinton pelo espaço da casa. Algo que só lhe é permitido fazer porque, ao contrário de todos os outros filmes aqui mencionados, o telefone, em lugar do objeto fixo e quase fetichista a que as mulheres se agarram (o auscultador), fica reduzido a dois auriculares sem fios, ou seja, sem necessidade sequer de ter o smartphone na mão. Desta vez, Almodóvar não pôs a protagonista a atirar o telefone pela janela, antes destruiu-o simbolicamente desde o princípio.
E chegámos ao ponto mais inventivo do jogo de mise-en-scène do realizador: o apartamento é um cenário construído dentro de um estúdio. A certa altura, a câmara coloca-se por cima da estrutura para dar a planta da casa, como que a mostrar ao espectador o mapa de uma dor encenada. É, no fundo, um delicioso golpe de formalismo. Um design interior colorido que acompanha o crescimento dramático de uma personagem prestes a libertar-se de objetos (nomeadamente DVD e livros que identificamos pelo gosto pessoal de Almodóvar) e roupas elegantes, acabando por servir de ignição para o gesto lúdico do desfecho. “O que foi isto?”, perguntamo-nos. Talvez um monólogo terapêutico com melodrama de alta-costura e uma proeza final com um não-sei-quê de anos 1980. No mínimo, revigorante.
Para quem aceitar o convite, há um brinde: as sessões de A Voz Humana são seguidas da projeção de uma entrevista com Pedro Almodóvar e Tilda Swinton.
Para quem aceitar o convite, há um brinde: as sessões de A Voz Humana são seguidas da projeção de uma entrevista com Pedro Almodóvar e Tilda Swinton.