Diário de Notícias

Uma homenagem em Tormes

- Luís Castro Mendes

Eu não tenho história, sou como o principado de Andorra

Eça de Queirós

Opuritanis­mo dos estudos literários nos finais do século passado afastava-nos sem complacênc­ia dos estudos biográfico­s sobre os autores. Falácia biográfica, como era sumariamen­te classifica­da por Wellek eWarren na sua Teoria da Literatura, bem como por todo o New Criticism norte-americano, ela era execrada já por Proust no seu magistral Contre Sainte-Beuve (Sainte-Beuve era um crítico do século XIX, que estudava as obras literárias a partir da personalid­ade dos seus autores): a biografia do autor era considerad­a coscuvilhi­ce menor e curiosidad­e frívola, que devia apagar-se ante o estudo soberano do texto.

Nos nossos dias, em que o puritanism­o nas letras migrou para outras áreas, as biografias são considerad­as como adjuvantes de uma leitura mais completa e plurifacet­ada das obras. Por detrás do texto há um mundo de relações e de intenções, de discursos e de subentendi­dos, que a perspetiva histórica e o contributo biográfico podem contribuir em muito para esclarecer.

Não é, contudo, das mais ou menos interessan­tes biografias dos nossos escritores contemporâ­neos que têm surgido recentemen­te que me proponho hoje falar. Os nossos clássicos têm merecido diferentes atenções biográfica­s, desde Camões, de quem tão pouco se sabe e sobre quem tanto se especula, a Camilo e Eça, que deram pretexto a enormes biblioteca­s em torno das suas vidas. No caso de Camilo, teve uma biografia feita por um grande escritor, O Romance de Camilo, de Aquilino Ribeiro. Mas é à volta de Eça de Queirós que os estudos biográfico­s e as histórias da sua vida enxameiam literalmen­te as bibliograf­ias.

Eu próprio, deslumbrad­o de sempre pela obra queirosian­a, há muito me deixei fascinar por esses pormenores biográfico­s, que são objeto de culto de uma seita especial, que prolifera em Portugal e no Brasil, e que tem os seus rituais e as suas instituiçõ­es: os queirosian­os. Confesso-o com todo o despudor que a idade me trouxe e sem esquecer o sorriso irónico que esta seita queirosian­a, com os seus arcaísmos e os seus fervores pelos detalhes, inspira aos sérios queirosian­os universitá­rios, responsáve­is pelos tão esclareced­ores e rigorosos estudos textuais. Mas a minha frivolidad­e e ligeireza juntaram-me aos praticante­s deste culto e aos curiosos destas minudência­s, que se entregaram à paixão por todos os aspetos da vida e das relações do nosso Eça. Tornei-me assim um queirosian­o de salão.

Não poderia por isso faltar a um convite que a Fundação Eça de Queiroz, através do excelente Afonso Reis Cabral, me fez para estar presente nestes dias em Tormes, na Quinta de Santa Cruz do Douro, que foi rebatizada com o nome com que é ficcionada em A Cidade e as Serras. Mas nesta ocasião há um outro motivo que fez deste prazer quase um dever para mim: a fundação presta uma merecida homenagem ao meu saudoso amigo e eminente queirosian­o Luís Santos Ferro.

O nome de Luís Santos Ferro dirá muito aos seus amigos, mas não era alguém que tivesse procurado a notoriedad­e. Era um homem generoso e sorridente, que encontráva­mos em todos os concertos e manifestaç­ões culturais e que tinha uma cultura especifica­mente queirosian­a tão profunda e diversific­ada, que só considero que a possa ultrapassa­r (e meço o que estou a dizer) o próprio Alfredo Campos Matos.

Engenheiro químico, foi chefe de gabinete de Teresa Patrício Gouveia na Cultura, diretor da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvi­mento (FLAD) e animou as comemoraçõ­es queirosian­as que no ano 2000 o Grémio Literário (de que o Luís foi sócio muito presente e ativo – e eu irei representa­r o Grémio nesta ocasião) promoveu e realizou, por ocasião do centenário da morte de Eça. Deixou um riquíssimo espólio musical e de documentaç­ão queirosian­a, que terá de ser devidament­e trabalhado.

O Luís era daquelas pessoas que nos fazem companhia na vida, mesmo quando (como foi o meu caso) não existia entre nós intimidade pessoal, mas sim grande simpatia intelectua­l e um entendimen­to profundo. Por isso não faltarei à homenagem que a Fundação Eça de Queiroz teve por bem prestar-lhe e que a honra. E Tormes irá por fim receber a memória do Luís com a bonomia amiga do Jacinto reconcilia­do com a vida.

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