Uma homenagem em Tormes
Eu não tenho história, sou como o principado de Andorra
Eça de Queirós
Opuritanismo dos estudos literários nos finais do século passado afastava-nos sem complacência dos estudos biográficos sobre os autores. Falácia biográfica, como era sumariamente classificada por Wellek eWarren na sua Teoria da Literatura, bem como por todo o New Criticism norte-americano, ela era execrada já por Proust no seu magistral Contre Sainte-Beuve (Sainte-Beuve era um crítico do século XIX, que estudava as obras literárias a partir da personalidade dos seus autores): a biografia do autor era considerada coscuvilhice menor e curiosidade frívola, que devia apagar-se ante o estudo soberano do texto.
Nos nossos dias, em que o puritanismo nas letras migrou para outras áreas, as biografias são consideradas como adjuvantes de uma leitura mais completa e plurifacetada das obras. Por detrás do texto há um mundo de relações e de intenções, de discursos e de subentendidos, que a perspetiva histórica e o contributo biográfico podem contribuir em muito para esclarecer.
Não é, contudo, das mais ou menos interessantes biografias dos nossos escritores contemporâneos que têm surgido recentemente que me proponho hoje falar. Os nossos clássicos têm merecido diferentes atenções biográficas, desde Camões, de quem tão pouco se sabe e sobre quem tanto se especula, a Camilo e Eça, que deram pretexto a enormes bibliotecas em torno das suas vidas. No caso de Camilo, teve uma biografia feita por um grande escritor, O Romance de Camilo, de Aquilino Ribeiro. Mas é à volta de Eça de Queirós que os estudos biográficos e as histórias da sua vida enxameiam literalmente as bibliografias.
Eu próprio, deslumbrado de sempre pela obra queirosiana, há muito me deixei fascinar por esses pormenores biográficos, que são objeto de culto de uma seita especial, que prolifera em Portugal e no Brasil, e que tem os seus rituais e as suas instituições: os queirosianos. Confesso-o com todo o despudor que a idade me trouxe e sem esquecer o sorriso irónico que esta seita queirosiana, com os seus arcaísmos e os seus fervores pelos detalhes, inspira aos sérios queirosianos universitários, responsáveis pelos tão esclarecedores e rigorosos estudos textuais. Mas a minha frivolidade e ligeireza juntaram-me aos praticantes deste culto e aos curiosos destas minudências, que se entregaram à paixão por todos os aspetos da vida e das relações do nosso Eça. Tornei-me assim um queirosiano de salão.
Não poderia por isso faltar a um convite que a Fundação Eça de Queiroz, através do excelente Afonso Reis Cabral, me fez para estar presente nestes dias em Tormes, na Quinta de Santa Cruz do Douro, que foi rebatizada com o nome com que é ficcionada em A Cidade e as Serras. Mas nesta ocasião há um outro motivo que fez deste prazer quase um dever para mim: a fundação presta uma merecida homenagem ao meu saudoso amigo e eminente queirosiano Luís Santos Ferro.
O nome de Luís Santos Ferro dirá muito aos seus amigos, mas não era alguém que tivesse procurado a notoriedade. Era um homem generoso e sorridente, que encontrávamos em todos os concertos e manifestações culturais e que tinha uma cultura especificamente queirosiana tão profunda e diversificada, que só considero que a possa ultrapassar (e meço o que estou a dizer) o próprio Alfredo Campos Matos.
Engenheiro químico, foi chefe de gabinete de Teresa Patrício Gouveia na Cultura, diretor da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e animou as comemorações queirosianas que no ano 2000 o Grémio Literário (de que o Luís foi sócio muito presente e ativo – e eu irei representar o Grémio nesta ocasião) promoveu e realizou, por ocasião do centenário da morte de Eça. Deixou um riquíssimo espólio musical e de documentação queirosiana, que terá de ser devidamente trabalhado.
O Luís era daquelas pessoas que nos fazem companhia na vida, mesmo quando (como foi o meu caso) não existia entre nós intimidade pessoal, mas sim grande simpatia intelectual e um entendimento profundo. Por isso não faltarei à homenagem que a Fundação Eça de Queiroz teve por bem prestar-lhe e que a honra. E Tormes irá por fim receber a memória do Luís com a bonomia amiga do Jacinto reconciliado com a vida.