Com Edgar Morin...
No dia em que Edgar Morin completou 100 anos, recebendo com entusiasmo as mensagens dos amigos, Vasco Wellenkamp apresentou na Fundação Gulbenkian o espetáculo Amar Amália, singular encontro entre a criatividade e o talento da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo e a força das palavras do fado. E a memória de Graça Barroso ali esteve também, inesquecível. Foi uma coincidência feliz, já que Morin ama intensamente, no fundo de si mesmo, as raízes ibéricas, no genuíno sentido da palavra sefardita. Ao ouvir a Gaivota, de Alexandre O’Neill e Alain Oulman, o Barco Negro ou Partindo-se – nos ritmos compassados do coração português, encenados por Wellenkamp, sentimos que Edgar estava connosco. Como esteve tantas vezes, nas vicissitudes da oposição à ditadura ou, apaixonadamente, na “revolução dos cravos” – “momento de êxtase na história portuguesa que, como todos os grandes êxtases da história, nos marcou para sempre com a sua poesia, iluminadora e fugitiva”, antes que o mundo voltasse a cair na prosa. Edgar Morin lembra esses tempos inolvidáveis e a fraternal amizade com Helena e Alberto Vaz da Silva e António Alçada Baptista.
Recorda o “esplendor de Lisboa” e as “maravilhosas amizades”. E o bailado ao som da voz de Amália leva-nos a um destino mais humano. “Se um português marinheiro / Dos sete mares andarilho / Fosse, quem sabe, o primeiro / A contar-me o que inventasse / Se um olhar de novo brilho / No meu olhar se enlaçasse // Que perfeito coração / No meu peito bateria / Meu amor na tua mão / Nessa mão onde cabia / Perfeito o meu coração.” O mundo torna-se possibilidade de criação de uma comunidade de destino para as pessoas de todos os continentes em face dos perigos comuns (nucleares, ecológicos, económicos). E essa comunidade de destino permite-nos entrever a possibilidade de uma metamorfose não transumana, mas para-humana, no sentido de uma humanidade melhor. Por isso, Morin fala de Terra-Pátria, que englobaria, sem as suprimir, as pátrias nacionais – na lógica de um pensamento político mais humano. E 2021 corresponde a uma etapa nova da aventura humana, com o paradoxo de todo-o-poder, por contraponto a toda-a-fragilidade humana. Como escreveu no Le Monde no dia dos seus anos: “Temos de compreender que tudo o que emancipa tecnológica e materialmente pode ao mesmo tempo escravizar, como o primeiro instrumento que se tornou ao mesmo tempo uma arma, até à inteligência artificial, passando pelas máquinas industriais.”
De facto, a devastação da biosfera terrestre provocará múltiplos desastres naturais, inundações, desertificações, modificações climáticas, e já originou dramáticas migrações e conflitos, designadamente para a utilização da água e para a repartição dos recursos energéticos e alimentares. E alerta-nos para o paradoxo da atual crise do pensamento – em que a informação substitui a compreensão e em que os conhecimentos isolados e fragmentários mutilam e destroem o conhecimento em si mesmo. Estamos desarmados pela insuficiência do pensamento, poderoso no cálculo e na produção de algoritmos com os dados disponíveis, mas cego para o que caracteriza a história humana: o surgimento do inesperado e a presença permanente de incertezas, que se agravam num tempo de crise, e sobretudo numa crise gigante como a que temos. Há vacinas, mas falta solidariedade para partilhar o progresso por quem dele precisa, há avanços científicos, mas a lógica mercantilista e a concorrência desleal põem em causa a visão humanista, segundo a qual devemos ser melhores e não tanto maiores. Edgar Morin insiste numa ética do género humano, numa cidadania inclusiva e respeitadora das diferenças, em nome da cultura da liberdade, da dignidade e da paz. E nesse sentido o bailado de quinta-feira ensinou-nos singelamente: “No princípio é a arte!”