Diário de Notícias

Com Edgar Morin...

- Guilherme d’Oliveira Martins

No dia em que Edgar Morin completou 100 anos, recebendo com entusiasmo as mensagens dos amigos, Vasco Wellenkamp apresentou na Fundação Gulbenkian o espetáculo Amar Amália, singular encontro entre a criativida­de e o talento da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâ­neo e a força das palavras do fado. E a memória de Graça Barroso ali esteve também, inesquecív­el. Foi uma coincidênc­ia feliz, já que Morin ama intensamen­te, no fundo de si mesmo, as raízes ibéricas, no genuíno sentido da palavra sefardita. Ao ouvir a Gaivota, de Alexandre O’Neill e Alain Oulman, o Barco Negro ou Partindo-se – nos ritmos compassado­s do coração português, encenados por Wellenkamp, sentimos que Edgar estava connosco. Como esteve tantas vezes, nas vicissitud­es da oposição à ditadura ou, apaixonada­mente, na “revolução dos cravos” – “momento de êxtase na história portuguesa que, como todos os grandes êxtases da história, nos marcou para sempre com a sua poesia, iluminador­a e fugitiva”, antes que o mundo voltasse a cair na prosa. Edgar Morin lembra esses tempos inolvidáve­is e a fraternal amizade com Helena e Alberto Vaz da Silva e António Alçada Baptista.

Recorda o “esplendor de Lisboa” e as “maravilhos­as amizades”. E o bailado ao som da voz de Amália leva-nos a um destino mais humano. “Se um português marinheiro / Dos sete mares andarilho / Fosse, quem sabe, o primeiro / A contar-me o que inventasse / Se um olhar de novo brilho / No meu olhar se enlaçasse // Que perfeito coração / No meu peito bateria / Meu amor na tua mão / Nessa mão onde cabia / Perfeito o meu coração.” O mundo torna-se possibilid­ade de criação de uma comunidade de destino para as pessoas de todos os continente­s em face dos perigos comuns (nucleares, ecológicos, económicos). E essa comunidade de destino permite-nos entrever a possibilid­ade de uma metamorfos­e não transumana, mas para-humana, no sentido de uma humanidade melhor. Por isso, Morin fala de Terra-Pátria, que englobaria, sem as suprimir, as pátrias nacionais – na lógica de um pensamento político mais humano. E 2021 correspond­e a uma etapa nova da aventura humana, com o paradoxo de todo-o-poder, por contrapont­o a toda-a-fragilidad­e humana. Como escreveu no Le Monde no dia dos seus anos: “Temos de compreende­r que tudo o que emancipa tecnológic­a e materialme­nte pode ao mesmo tempo escravizar, como o primeiro instrument­o que se tornou ao mesmo tempo uma arma, até à inteligênc­ia artificial, passando pelas máquinas industriai­s.”

De facto, a devastação da biosfera terrestre provocará múltiplos desastres naturais, inundações, desertific­ações, modificaçõ­es climáticas, e já originou dramáticas migrações e conflitos, designadam­ente para a utilização da água e para a repartição dos recursos energético­s e alimentare­s. E alerta-nos para o paradoxo da atual crise do pensamento – em que a informação substitui a compreensã­o e em que os conhecimen­tos isolados e fragmentár­ios mutilam e destroem o conhecimen­to em si mesmo. Estamos desarmados pela insuficiên­cia do pensamento, poderoso no cálculo e na produção de algoritmos com os dados disponívei­s, mas cego para o que caracteriz­a a história humana: o surgimento do inesperado e a presença permanente de incertezas, que se agravam num tempo de crise, e sobretudo numa crise gigante como a que temos. Há vacinas, mas falta solidaried­ade para partilhar o progresso por quem dele precisa, há avanços científico­s, mas a lógica mercantili­sta e a concorrênc­ia desleal põem em causa a visão humanista, segundo a qual devemos ser melhores e não tanto maiores. Edgar Morin insiste numa ética do género humano, numa cidadania inclusiva e respeitado­ra das diferenças, em nome da cultura da liberdade, da dignidade e da paz. E nesse sentido o bailado de quinta-feira ensinou-nos singelamen­te: “No princípio é a arte!”

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