Diário de Notícias

“Temo que a concretiza­ção do PRR possa ser inviabiliz­ada por culpa do Estado”

A má política de ordenament­o e a existência de planos diretores municipais com mais de 20 anos são motivos que levam Luís Gomes, professor da Faculdade de Economia da Universida­de do Algarve, a temer que o Plano de Recuperaçã­o e Resiliênci­a de Portugal nã

- ENTREVISTA ANA MEIRELES ana.meireles@vdigital.pt

Bruxelas deu luz verde ao PRR de Portugal e elogiou o plano. Concorda com esses elogios? Acha que Portugal está preparado para receber esta bazuca? António Costa diz que o plano foi desenhado com uma “visão de futuro”.

Eu acho que o PRR aponta um conjunto de caminhos bastante importante­s e que vão no sentido de acompanhar as grandes tendências da economia mundial e os grandes desafios da economia verde, da capacidade tecnológic­a produtiva do país, embora ao longo deste tempo tenha havido uma ou outra posição divergente relativame­nte àqueles que são os objetivos do PRR, fundamenta­lmente políticas do ponto de vista técnico que não têm sido nada diferentes daquilo que são os caminhos apontados pelo PRR. Acho que é um plano importante, que, de alguma forma, constitui um desafio relevante para o país nos próximos anos. Portanto, relativame­nte à questão do PRR não tenho muito a dizer, aponta o caminho para o país. Aquilo que podemos discutir é se tem possibilid­ades de ser bem concretiza­do. E embora a presidente da Comissão Europeia tenha elogiado publicamen­te PRR português, nestas coisas o mais importante não é como começa, é como acaba. Porque como acaba significa a capacidade de este PRR ter criado impactos positivos na economia e na sociedade portuguesa­s e na alteração estrutural da organizaçã­o dos setores económicos. Disso é que nós precisamos. Precisamos efetivamen­te de diversific­ar a base económica, sobretudo nalgumas regiões, como é o caso do Algarve, atenuando a importânci­a e o peso relativo do turismo, procurando dar espaço para outras atividades da economia, mais na área empresaria­l, na área industrial, na área tecnológic­a, e para isso temos que ter o território com capacidade para absorver este PRR. O que quer dizer com isso?

Se amanhã quisermos colocar num concelho do Algarve uma grande fábrica de produção de chips ou de outros produtos tecnológic­os vamos ter muita dificuldad­e em que os PDM locais possam acolher esse investimen­to. A vigência média de um plano diretor municipal no Algarve são 28 anos, quando a lei obriga que sejam dez anos. Quer isto dizer que é impossível realizar e concretiza­r um PRR quando uma estratégia que está vigente no território data de há mais de 30 anos. Este é que é o grande problema. Acho que Portugal anda há décadas a enganar Bruxelas relativame­nte ao cumpriment­o do Tratado da União Europeia, designadam­ente do princípio da subsidiari­edade, que obriga a um processo de descentral­ização, que obriga a um processo em que efetivamen­te as regiões possam ter um papel mais ativo na gestão dos fundos comunitári­os. Portanto, se me perguntar se o PRR é um plano relevante, um plano importante, se tem objetivos importante­s para o país, eu dir-lhe-ei que sim. Se me perguntar se o país está preparado para absorver esse PRR, eu vou dizer que tenho muitas dificuldad­es em poder aceitar essa ideia, até porque acho que o país continua com uma arquitetur­a do Estado e do seu funcioname­nto muito ultrapassa­da.

Diz que o PRR incorre no mesmo erro de outros planos: a ausência de conhecimen­to do país real e da

“Acho que Portugal anda há décadas a enganar Bruxelas relativame­nte ao cumpriment­o do Tratado da União Europeia, designadam­ente do princípio da subsidiari­edade.”

“Os últimos ministros do Ambiente, que têm a pasta do Ordenament­o do Território, têm sido absolutame­nte irresponsá­veis e incompeten­tes nesta matéria.”

forma como a administra­ção funciona e está organizada. Porquê?

O território tem planos diretores municipais e são os planos diretores municipais que permitem receber ou não determinad­os investimen­tos. Os PDM neste país estão completame­nte ultrapassa­dos em relação aos objetivos estratégic­os para o país. Ou seja, não conseguem receber aquilo que são os desafios económicos para o país. Não é só um problema de funcioname­nto da administra­ção – que também é, pois temos uma administra­ção extremamen­te centraliza­da, os fundos comunitári­os estão extremamen­te centraliza­dos. Para além disso os planos em vigor vão ter muitas dificuldad­es em se adequar às orientaçõe­s estratégic­as e desafios que estão incluídos, e bem, no PRR. Acha então que o PRR até é bom, tem boas ideias, mas vai acabar por não funcionar?

O PRR é importante, mas quando formos para a materializ­ação desses investimen­tos ao nível regional, ao nível local, eles vão ter dificuldad­es em ser garantidos, em ser viabilizad­os, porque os PDM não os vão permitir. E porque é que isto acontece? Acontece porque nós temos uma política económica que está desfasada de uma política do ordenament­o do território. E sem termos planos de ordenament­o do território que permitam concretiza­r os objetivos da política económica nunca teremos sucesso na concretiza­ção de planos como este do PRR.

E como é que se pode alterar essa situação?

Temos assistido a uma gestão, do ponto de vista do território, absolutame­nte inexistent­e por parte do ministro do Ambiente. Ao longo dos últimos seis anos que está no governo, tem feito remendos aqui e acolá, mas não tem resolvido os grandes problemas do território. E a administra­ção do território é, sem dúvida nenhuma, um desafio essencial hoje para o país. Não podemos ter planos diretores municipais que há 20 e tal anos estão para ser revistos. Como é que isso é possível? Os planos do Algarve existem há 28 anos! Isto é inimagináv­el! Como é que se pode estar com um PRR, com ideias inovadoras, ideias deste tempo, com orientaçõe­s estratégic­as que estão introduzid­as nos PDM desde os anos 1980 e princípio dos anos 1990. É como termos aqui uma linha de caminho-de-ferro eletrifica­da e ainda estarmos com o comboio a carvão. Esse é que é o grande problema hoje para a concretiza­ção do PRR. Temo, não obstante concordar com os objetivos estratégic­os do mesmo, que a sua concretiza­ção possa ser inviabiliz­ada por culpa do próprio Estado.

Dê-me um exemplo prático de como um PDM pode inviabiliz­ar um projeto do PRR.

Imagine que o PRR prevê um polo tecnológic­o em Faro. Vamos ao PDM de Faro e não há nenhum sítio em que se possa receber esse uso, digamos assim, não está previsto. Porquê? Porque o PDM de Faro é do início dos anos 1990, outros tempos, em que não se falava em PRR. Então o que é que o presidente da Câmara de Faro, com o governo, vai fazer? Alterar o PDM para poder acolher esse projeto do PRR. E uma alteração do PDM demora quanto tempo? Demora três, quatro, cinco anos. Quando for alterado para poder acolher esse investimen­to, já o PRR chegou ao fim.

Portanto, o nosso PRR pode não funcionar...

Porque temos uma administra­ção em Portugal caduca! Antiquada. Um jornal escreveu que Espanha quer adiantar os investimen­tos do PRR, porque uma alteração do PDM em Espanha demora seis a oito meses. Em Portugal, se às vezes demorar até seis anos já é bom. Em Inglaterra, uma alteração do PDM, chama-se local plan, faz-se em meses. Nos Estados Unidos faz-se em meses. Portugal é que tem uma administra­ção urbanístic­a absolutame­nte caduca. E os últimos ministros do Ambiente, que têm a pasta do Ordenament­o do Território, têm sido absolutame­nte irresponsá­veis e incompeten­tes nesta matéria, quando esta é a matéria que garante a eficácia da política económica. Qual acha que é o papel dos municípios em todo este processo?

É negociar com o governo, e aqui devem ser encontrada­s orientaçõe­s regionais de forma a encontrar soluções para acelerar a concretiza­ção desses investimen­tos. Aqui destaco o papel feito na AMAL, que é a Associação de Municípios do Algarve, em que nós aqui na Faculdade de Economia criámos uma equipa com quatro docentes, onde eu me incluía, e desenhámos um PRR para a AMAL que previa medidas concretas para possibilit­ar a concretiza­ção mais rápida dos projetos diferencia­dores, daqueles projetos estratégic­os. E eu acho que isso é que tem de ser feito para já. Nós temos a mesma administra­ção do território que sempre tivemos ao longo das últimas décadas. Este não é um problema do governo PS, o governo do PSD não tratou deste assunto também ao longo de décadas. É um problema do país, é um problema de quão distantes estão os políticos com responsabi­lidades, sobretudo os ministros do território, dos problemas reais do território, das regiões, das localidade­s.

Acha que haverá vontade deste governo e do Estado para que haja alterações do ordenament­o para implementa­ção do PRR?

Eu acho que qualquer governo, qualquer Estado, quer que o país funcione melhor. A grande questão é que há uma tentação enorme de centraliza­r os processos nos gabinetes ministeria­is, o que portanto impede processos de regionaliz­ação ou de descentral­ização. Ou seja, impede que se cumpra o princípio da subsidiari­edade – por isso é que eu disse que Portugal anda a enganar há décadas a União Europeia relativame­nte a esta matéria, porque eu fui membro do Comité das Regiões durante três anos, entre 2014 e 2017, e fiquei com a sensação ao longo destes anos de que a União Europeia acha que Portugal tem um nível de descentral­ização muito próximo dos cidadãos e isso não acontece. É um erro que Portugal tem vendido, os diferentes governos, das diferentes cores políticas, a Bruxelas, e tem conseguido enganar Bruxelas, de facto. Agora, acho é que para isso que nós precisamos de maior articulaçã­o entre o ministro da Economia e o ministro do Ambiente e do Ordenament­o do Território, porque as reformas no território são bastante essenciais. Se não forem feitas estas reformas, digo já que o PRR não vai ter a eficácia que se espera.

Este PRR surge como resposta a um momento muito particular da vida mundial, a crise causada pela pandemia. O que acha que pode acontecer a Portugal se o PRR não for bem-sucedido?

Mais uma oportunida­de falhada. O que o PRR vem introduzir de novo, e que eu subscrevo, é o salto naquilo que é o paradigma da organizaçã­o da economia portuguesa, a aposta em setores inovadores, fazer de Portugal um país nalgumas áreas em que hoje manifestam­ente não exporta. Na prática, estamos aqui a fazer uma transição tecnológic­a bastante importante na estrutura económica do país – isto é o que se diz em termos globais, as energias verdes, na tecnologia, enfim, através de tudo isso – e eu subscrevo esses desafios e essa ambição. Mais uma vez, se não se fizerem essas medidas não conseguimo­s dar eficácia à concretiza­ção destes objetivos estratégic­os. Logo, mais uma vez, temos um plano muito bonito no papel e depois na prática muito aquém do que era o efeito desejado. Mashácoisa­snoPRRquen­ãodependem­dosPDM.Umadasapos­tas énoServiço­Nacionalde­Saúde... Sim, com certeza. Mas até aí, se quiser construir um hospital e o PDM não tiver previsto um hospital nessa localizaçã­o, tem um problema. Acha que no final, como já disse, vamos enganar mais uma vez Bruxelas porque vamos concretiza­r alguma coisas do PRR, mas não iremos concretiza­r outras? Exatamente! Essa é a grande questão. E, portanto, se não houver uma reforma para o território... Nós não podemos querer cresciment­o económico quando pessoas que querem investir no país estão há anos à espera de uma resposta do país, das câmaras, do governo. Isto é, hoje, a realidade do dia-a-dia.

Depois, a nível local, há a questão de as câmaras terem apresentad­o os seus projetos de financiame­nto do PRR...

Isso é bom. Mas a discussão não é aí. A discussão é a estrutura do território. Hoje temos uma administra­ção do território que não consegue dar resposta aos desafios da economia. Porque é pesada, porque demora a decidir, porque está desadequad­a. Essa é que é a grande questão. Um PDM no Algarve tem em média uma duração de 25 anos, quando a lei obriga a que sejam revistos em dez anos. E isto quer dizer que hoje o país tem uma organizaçã­o, aqui nesta região, com a mesma estratégia de há 30 anos. E eu pergunto, como é que se pode modernizar a economia com uma estratégia que tem mais de 30 anos? Não é possível. Por exemplo, no Alentejo, o PDM tem em média 16 anos. Em Lisboa e Vale do Tejo, em média, tem 18 anos. Na zona centro, em média, tem 12 anos. E no norte, onde está nos termos na lei, cada PDM tem uma média de nove anos. Mais uma vez insisto, temos uma organizaçã­o do território que não está adequada aos objetivos da economia e isso significa que o PRR vai ter dificuldad­es em ser executado.

A regionaliz­ação pode ser uma solução para as coisas mudarem?

A regionaliz­ação ou um processo de descentral­ização. O caminho é cumprir o princípio da subsidiari­edade no Tratado da União Europeia. A partir do momento em que Portugal consiga cumprir esse princípio, que é descentral­izar até um nível que faça sentido de forma a agilizar a economia, isso é o que tem de ser feito. Mas com certeza que a regionaliz­ação viria dar um contributo essencial para isto.

“Sem termos planos de ordenament­o do território que permitam concretiza­r os objetivos da política económica nunca teremos sucesso na concretiza­ção de planos como este do PRR.”

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