Diário de Notícias

Vida, biodiversi­dade e natureza na Zona de Caça Turística do Pereiro

Há um mundo de biodiversi­dade que a caça ajuda a criar

- TEXTO JOANA PETIZ FOTOGRAFIA­S E VÍDEO LUÍS STOFFEL

Perdizes e perdigotos, lebres e coelhos em estado natural, com comida farta e água. Aqui se criam populações crescentes e ricos ecossistem­as, que até já atraíram famílias de linces-ibéricos, graças à gestão de Carlos Alcario. Assim se vive na Zona de Caça Turística do Pereiro.

O “lhem ali! Vai ali uma com os perdigotos todos atrás, isto é tudo gente nova. E aquela anda a gritar pelo pequenito, a chamá-lo, olhe ela à procura do pequenino.” A Carlos Alcario não lhe chegam os dedos para apontar as perdizes que nos correm à frente pelo caminho de terra, seguidas pelos perdigotos acabados de sair dos ovos, outros de duas semanas, de um mês. E o entusiasmo de ver a terra viva não lhe cabe no peito. “Isto é um mundo. E foi criado aqui por nós”, orgulha-se, olhos postos na Alcaria Alta, que fica a um quilómetro da fronteira com Espanha e marca o fim dos 15 mil hectares que compõem a Zona Turística de Caça do Pereiro, que rasga a meio o concelho de Alcoutim, com a ribeira da Foupana a atravessá-la.

As estradas que permitem circular, que abrem espaço aos bombeiros e lhes dão acesso a pontos de água foram feitas na gestão de Alcario, que toma conta da área, que conseguiu juntar 796 proprietár­ios numa zona de caça única no país. Apesar da aridez da terra e de passar metade do ano debaixo de 30ºC, há uma década que não há fogo que ali pegue – “quando cá cheguei, há 15 anos, ardiam uns 300 hectares todos os anos”, relata, a frase várias vezes interrompi­da para lhe seguirmos o olhar até mais um bando de perdizes, um coelho a espreitar no meio delas, a beber na charca mais adiante, enquanto o calor da manhã não se instala e os leva ao recolhimen­to.

Às 8h30, o sol já perdeu a piedade e poucas sombras se levantam no campo a encher-nos os olhos de amarelo-torrado. À frente, a sementeira plantada pelos gestores da reserva, para que os animais tenham o que comer durante os meses mais duros – a caça e os restantes, que ali têm chegado graças à gestão profission­al que garante a preservaçã­o dos habitats, que criou um riquíssimo ecossistem­a. Graças ao trabalho feito a cada dia do ano pela gestão de Alcario da Zona de Caça Turística do Pereiro, garante-se as condições ideais do terreno, a limpeza do mato e da esteva, que sempre ameaça tomar conta do campo, a comida farta e a água – foram instalados pela propriedad­e 500 bebedouros artificiai­s, a somar às charcas e à ribeira – para as espécies que ali se fixaram. Nos últimos anos, tem chegado de tudo – e Alcario conhece cada espécie pelo nome e pela quantidade ao dia de hoje. Há populações enormes de veados, que imigraram de Espanha pelas melhores condições de vida que encontrara­m em Alcoutim, “há três águias-de-bonelli, que era coisa que aqui nunca existiu, há abetardas, barrigas-negras e até famílias de linces-ibéricos, graças a este mosaico que aqui criámos”, relata.

Como é que alguém tão apaixonado pela natureza, pelos bichos, pode ser caçador? Conhecendo quem se dedica à atividade cinegética e ao mundo rural real, para lá das mensagens truncadas fabricadas nos meios urbanos, esse amor pela vida e pelo campo é uma realidade absoluta. Alcario explica: “O homem é caçador, está-lhe no ADN. Como o campo o está. E para haver caça tem de haver condições dos habitats.”

Osvaldo dos Santos Gonçalves, presidente da Câmara de Alcoutim, garante que “a primeira preocupaçã­o de quem caça é preservar”. Ele próprio caçador há mais de 20 anos, tantos ou mais do que os de agente bancário ou na vida política (PS), conta, ainda com visível consternaç­ão, o “crime” a que assistiu há dias, em que um carro a passar na estrada atropelou uma perdiz e os seus perdigotos. “Aquilo cria uma sensação de perda e de revolta... A nossa vontade e querença é ver os bichos a crescer, é vê-los a criar.”

O enorme desconheci­mento do mundo rural

Osvaldo lamenta que, a partir da cidade, as visões do mundo rural cheguem distorcida­s e radicalmen­te erradas. “Há um desconheci­mento enorme, não se tem noção da realidade e define-se a partir da cidade e dessas noções o destino do país rural”, lamenta, destacando o peso cada vez menor que o campo tem nas instituiçõ­es decisoras dos seus destinos. “Qualquer prédio na Amadora tem mais votos do que as freguesias de concelhos rurais, e isso fez-nos perder representa­tividade. Se a questão dos animais não for percebida

A Zona Turística de Caça do Pereiro, que rasga a meio Alcoutim, junta 796 proprietár­ios numa zona de caça única no país. Apesar da aridez da terra e de passar metade do ano debaixo de 30ºC, há uma década que não há fogo que ali pegue.

como é que as pessoas tratam bem as coisas, cuidam, se preocupam – mas quem cuida de um porco durante o ano é para o comer, não para o levar a passear –, os campos vão morrer.”

O que vaticina tem a ver não só com a destruição dos ecossistem­as – “sem intervençã­o humana, não sobrevivem, os campos ficam invadidos por mato, as espécies deixam de lá entrar, vêm os fogos extremos e a desertific­ação. É uma perda imensa”, resume António Paula Soares, engenheiro biofísico e presidente da Associação Nacional de Proprietár­ios Rurais, Gestão Cinegética e Biodiversi­dade (ANPC). Tem que ver também com a fuga dos poucos que ainda teimam em ficar a fazer vida por Alcoutim, se lhes roubarem o sustento.

aqui 2500 pessoas e trabalham, sobretudo, na função publica, alguns na silvicultu­ra e no fabrico do pão. A caça faz toda a diferença, porque traz emprego e anima a região em alturas em que não haveria turismo.” As jornadas de trabalho sazonais ligadas à atividade cinegética são nos meses de outono e inverno, fora das tradiciona­is épocas turísticas. E já ali levaram personalid­ades de monta, como o rei Carlos Gustavo da Suécia, que caçou no Pereiro em 2019.

“Há que desmistifi­car essas ideias de que os caçadores são anormais, a cinegética é normal, faz parte da nossa ambiência, do mundo rural, da história e da cultura do país, e é fundamenta­l na defesa da biodiversi­dade”, vinca o autarca. Que também olha os números e a sustentabi­lidade económica da sua região se o potencial cinegético fosse levado a sério por Lisboa.

Em termos nacionais, a atividade cinegética tem um impacto de 330 milhões de euros/ano, mas o valor potencial por explorar está muito além desse: os estudos da área apontam para 812 milhões de euros desperdiça­dos todos os anos diretament­e da caça. A que depois se soma o potencial turístico, o consumo, as deslocaçõe­s, etc.

“Estão aqui as primeiras gatas (lince-ibérico) nascidas em liberdade”

É uma realidade que Luís Ramos conhece bem. Quando o verão se vai e com ele os turistas que descobrem Alcoutim, é da caça que vive a sua Taberna do Ramos. “Sou eu, a minha mulher e a minha mãe, que é cozinheira antiga, a trabalhar. É o nosso sustento. E esse movimento que a caça traz é importantí­ssimo.” Traz clientes – mexe muito com o restaurant­e, que no frio não tinha quase ninguém se não fossem os caçadores” – e também traz a ementa, que ali o que se serve vem diretament­e do campo, seja coelho ou perdiz frita, javali estufado ou lebre com feijão branco. “A gastronomi­a é toda baseada na caça”, reforça Luís, ele próprio caçador “há 27 anos”. São os três pilares de sustentabi­lidade, de que nos fala António Paula Soares, cumpridos: ambiental, económico e social. Lá iremos mais adiante.

Caçador desde que se lembra e tendo aprendido muito com os antigos da terra, Carlos Alcaria lê a natureza como um livro para crianças. E relata-a com paixão por cada pedaço do campo que à frente se lhe estende. Aponta a meio do caminho: “Ali está uma latrina de lince. Esteve aí nesta noite, que ainda está escura. Há aí uma gata que saltava pela janela e uma vez saltou mesmo à minha frente e foi seguindo a andar, depois parou, virou-se para trás e olhou para mim. Foi tão bonito que até me arrepiei! Nós estamos fora da zona do lince-ibérico, mas eles vieram de Mértola para aqui graças a estas condições. Esta que olhou para mim foi a primeira gata a nascer em estado selvagem, é a Nuvem. É tão esper“Vivem

Há populações enormes de veados que imigraram de Espanha pelas melhores condições de vida que encontrara­m em Alcoutim, “há três águias-de-bonelli, que era coisa que aqui nunca existiu, há abetardas, barrigas-negras e linces-ibéricos graças a este mosaico que aqui criámos”, relata Alcario, o gestor da zona de caça.

ta que atrás da toca dela tem a cozinha, uma toca de coelhos mesmo ali.”

Segundo o Instituto de Conservaçã­o da Natureza e das Florestas, “que muito nos tem ajudado, e nós a eles, com cada vez mais interação, amizade e colaboraçã­o, graças ao efetivo de coelhos e ao trabalho aqui feito, temos a sorte de ter aqui as primeiras gatas que nasceram em estado selvagem e que já vão no terceiro ano de geração: a Nuvem, que ainda agora teve quatro gatinhos, e a Odemira, que teve três”, elenca Alcario.

“Não queremos cá desses que matam tudo!”

Enquanto nos embrenhamo­s pelo campo que conhece ao centímetro, o gestor da Zona de Caça Turística do Pereiro conta que aquela imensidão de vida começou quase como uma brincadeir­a, mas foi crescendo e ganhando solidez, agregando cada vez mais áreas e proprietár­ios ao projeto, até aos atuais 796 que se juntam para dar vida àquele quadro vivo. “É bonito, não é?”, diz, a abarcar a imensidão com o olhar. Fala mais para si próprio do que para nós, antes de acrescenta­r que o que ali temos à frente “dá muito trabalho; damos o nosso melhor todos os dias, mas tem corrido bem e acho que isso está à vista”.

Haverá quem se espante, mas o trabalho dos caçadores é feito em estreita colaboraçã­o com o Instituto de Conservaçã­o da Natureza e das Florestas (ICNF) – é, aliás, da caça que lhe vem a maioria do orçamento, 10 milhões de euros/ano, um valor semelhante ao que a atividade cinegética rende anualmente ao Estado em impostos (10,7 milhões de receitas diretas).

Ali, em terras de Alcoutim, há pouco mais de que se possa retirar valor, além da atividade cinegética. “Em termos agronómico­s, há zonas muito mais rentáveis; por exemplo, em Beja bastam 500 m2 para criar um par de ovelhas”, explica António Paula. “Nestas condições aqui, uma ovelha precisa de três ou quatro hectares, senão a ovelha come-nos a nós; é como ter um gato de luxo”, junta Alcario.

Além de gerir o território ao milímetro, é a ele que cabe manter registo de quantos exemplares há na zona de caça e é ele que dá a ordem para parar. “Não queremos cá desses que matam tudo! Queremos calma no campo.”

Para ali chegar, cada caçador tem de o contactar e deixar referência­s, dizer de onde vem, com quem vem e quem lhe indicou o Pereiro. São tiradas referência­s à moda antiga, mas a maioria dos que ali chegam vêm pela mão de quem já ali caçou e sempre fica com vontade de repetir, os grupos vão-se criando e reproduzin­do.

A caça é contada e controlada, e se o calendário oficial dita que se

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal