Diário de Notícias

Onde o mar acaba e a vinha começa há uma aposta de futuro

Com uma história tão acidentada como o solo em que é cultivada, a vinha do Pico quer recuperar o lugar de destaque que já teve. Aposta em novas marcas e estratégia­s sempre em luta com os caprichos da natureza.

- TEXTO MARIA JOÃO MARTINS

No princípio era a lava a que os séculos foram dando a forma de pedra tão escura que diríamos estar diante de um pedaço dos confins da Terra trazido a nossos olhos. Assim é o Pico, a ilha mais jovem dos Açores, onde, já no final do século XVI, o espírito de sacrifício dos seus habitantes desconcert­ava viajantes como o escritor Gaspar Frutuoso: “Há nesta freguesia muitas vinhas, que vão em muito cresciment­o, e grandes criações de gado vacum e ovelhum, e algumas cabras, e terras, não muitas, de lavoura de trigo e outros legumes, e muita madeira, que ali se tira do mato. E quase toda é terra fragosa de biscoito, pedraria viva, e não tem mais terra que a que se faz das folhas das árvores, a qual se gasta o primeiro ano que se cultiva, e daí fica em pedra viva se não cria mato que torne a criar terra, como faz com as folhas do mesmo mato, onde há muitas ribeiras secas.”

Tantos séculos depois, Losménio Goulart, presidente da Cooperativ­a Vitiviníco­la da Ilha do Pico, assegura-nos que “é preciso um pouco de loucura para se ser produtor de vinho neste lugar do mundo”. Isto porque os caprichos da geografia são tanto a força como a fraqueza dos vinhos da ilha: “O nosso terroir é inconfundí­vel, em primeiro lugar devido às caracterís­ticas do solo vulcânico, que lhe dão uma mineralida­de diferente da dos outros vinhos. Mas a proximidad­e do mar também é importante: Aqui as vinhas acabam onde começa a água salgada.” Mas em anos marcados por grandes intempérie­s (como a tempestade Lola, em abril passado) estas particular­idades naturais viram-se contra os produtores: “Já sabemos que este vai ser um ano mau, com uma grande quebra de produção. Em média, a cada 10 anos temos dois ou três razoavelme­nte bons, três médios e o resto é para esquecer.” As particular­idades do solo também podem ser uma dificuldad­e: a tal terra em pedraria viva, de que falava Gaspar Frutuoso, torna todo o trabalho particular­mente oneroso, salienta Losménio Goulart, “porque tudo tem de ser manual, não há qualquer hipótese de meter ali uma máquina agrícola”.

Mas muito foi feito nos últimos anos. No final da década de 90, quando Losménio estudava na Universida­de de Aveiro, “ninguém ouvira falar nos vinhos do Pico”, diz. “As pessoas conheciam o queijo de São Jorge ou o ananás de São Miguel, mas nada mais. O vinho que se fazia aqui era sobretudo para consumo local.” A partir de 2015/2016, a situação foi-se modificand­o: “Só se começou a trabalhar a internacio­nalização a partir daí. Há muita coisa por fazer, mas já conseguimo­s encontrar alguns parceiros estratégic­os no continente e em 15 países, na

União Europeia sobretudo, mas também Brasil e Canadá.” Fundada em 1949 (embora só tenha começado a laborar realmente em 1961), esta cooperativ­a reúne hoje 284 produtores e representa mais de 60% dos vinhos certificad­os dos Açores, entre brancos, tintos, espumantes, rosés e licorosos, com destaque para as variedades autóctones, Arinto dos Açores, Verdelho e Terrantez do Pico.

O futuro parece assegurado, já que o presidente da cooperativ­a salienta o número crescente de jovens produtores que se dedicam a esta atividade, às vezes com microproje­tos. É o caso de Lucas Amaral, que, em plena pandemia, avançou com um negócio familiar e criou a Adega Amaral: “Esse negócio nasceu porque , com a pandemia, as outras adegas da ilha não estavam a comprar uvas. Sem saber como as escoar, acabámos por pensar em desenvolve­r a nossa própria marca, até porque a atividade não era completame­nte nova para a família”, conta o próprio. Em tempos mais distantes, o avô de Lucas já produzia o seu próprio vinho de cheiro, embora não em grandes quantidade­s.”Quando nos lançámos, diziam-nos que estávamos loucos. Como é que em plena crise da pandemia iniciávamo­s um negócio que é oneroso, porque as uvas açorianas são das mais caras do mundo?”

Um ano depois, a jovem Adega Amaral tem três brancos engarrafad­os no mercado nacional, com o Fernão Pires no top de vendas. “Na próxima semana vamos engarrafar o primeiro branco de uvas tintas aqui dos Açores”, anuncia Lucas Amaral. O objetivo é não só fazer crescer o número de vendas como continuar a experiment­ar para diversific­ar a oferta.

Uma história atribulada

A história da vinha do Pico é tão acidentada como a própria topografia da ilha. Entalada entre a montanha e o mar, conquistou uma certa reputação internacio­nal, de que Raul Brandão dá conta em As Ilhas Desconheci­das: “A vinha tem fama no mundo. O vinho branco do Pico, feito de Verdelho e criado na lava, é um líquido com um pico amargo, cor de âmbar e que parece fogo. Levantam uma pedra, atiram um punhado de terra para o buraco e a videira deita raízes como pode, abrigada no curral pelos muros e estendida no chão sobre calhaus. Só lhe levantam um pouco as varas quando o cacho está perto de amadurecer. O Pico já deu milhares de pipas de vinho, que exportava quase na totalidade para a Rússia.”

Segundo a lenda, que facilmente se apodera de paisagem tão invulgar, terá sido Frei Gigante (que hoje dá nome a um dos vinhos mais procurados da região) quem, ainda no século XVI (ou seja, nos alvores do povoamento ordenado pela Coroa), terá plantado as primeiras vinhas. Mas estas eram em tudo diferentes do que se fazia em Portugal continenta­l. Os solos e as pedras basálticas, que impossibil­itaram outras culturas agrícolas e o desenvolvi­mento da ilha, foram levantadas e montadas em maroiços (nome local para designar uma espécie de muro construído em camadas) e labirintos de currais (leia-se lote de terra delimitado), que hoje vincam a paisagem da ilha. A mesma que em 2004, por causa das suas singularid­ades, foi classifica­da como Património Cultural da Humanidade pela UNESCO. Na base desta decisão está o facto de estes sítios constituír­em excelentes representa­ções da arquitetur­a tradiciona­l ligada à cultura da vinha, do desenho da paisagem e dos elementos naturais, com uma rede de longos muros de pedra, espaçados entre si, que correm paralelos à costa e penetram em direção ao interior da ilha. Erguidos para proteger do vento e da água do mar as videiras, que são plantadas em milhares de pequenos recintos retangular­es,, colados uns aos outros, estes muros formam uma manta de retalhos de pequenos campos, de casas e quintas do início do século XIX, de ermidas, portinhos e poços de maré.

“Houve um período de ouro”, recorda ainda Losménio Goulart, “em que os nossos vinhos eram exportados para os Estados Unidos, para vários países europeus e sobretudo para a Rússia”.

Segundo testemunha­m autores como Chateaubri­and, Almeida Garrett ou mesmo Tolstoi, que foram apreciador­es do “rescendent­e Pico”, foi durante a primeira metade do século XIX que este vinho correu mundo, tendo sido muito apreciado no Reino, ilha da Madeira, Brasil, Índias Ocidentais e Orientais, mas também em Inglaterra, Alemanha e, consta, terá mesmo chegado à mesa dos czares da Rússia. Até que chegou o fatídico ano de 1852, que trouxe à ilha do Pico uma desgraça com o nome de oídio e, 20 anos depois, haveria de surgir uma outra praga chamada filoxera.

Foi o descalabro económico para proprietár­ios, morgados, barões, viscondes, fidalgos e outros “senhores” da ilha do Faial, proprietár­ios das maiores vinhas do Pico. E pior ainda para os que viviam do vinho: feitores, quinteiros, vinhateiro­s, caseiros, rendeiros, carreiros, tanoeiros e outros trabalhado­res rurais. Esta foi a tragédia da família de um dos maiores produtores de vinho do Pico, Manuel Inácio de Sousa, também ele morador na cidade da Horta, como refere Losménio Goulart:

“Ele fez uma fortuna com a exportação do vinho do Pico, mas a filha, Francisca Cordélia de Sousa, não conseguiu escapar à decadência, também por causa destas condições tão adversas.”

A recuperaçã­o só aconteceri­a no século XX, quando à ilha chegaram algumas castas provenient­es dos Estados Unidos, que se revelariam mais resistente­s a pragas como o oídio ou a filoxera. De resto, salienta Losménio Goulart, “ao contrário do que aconteceu com os vinhos da Madeira e do Porto, os Açores nunca tiveram a sorte de conhecer grandes investidor­es estrangeir­os, capazes de internacio­nalizar as suas marcas”.

Esta acidentada história é hoje objeto de alguns dos projetos de enoturismo que estão a ser desenvolvi­dos na região. É o caso do Museu do Vinho, que entre dragoeiros seculares às portas da vila da Madalena, reconstitu­i modos de produção (e exportação) de outras eras, mas também na própria cooperativ­a, que a partir de 2016 passou a proporcion­ar visitas guiadas e provas de vinho e degustação de tapas. A qualidade é sempre a principal aposta. Mesmo que a vinha hoje já não ocupe os 10 mil hectares que chegou a ter na idade de ouro do negócio, mesmo que já não haja czares da Rússia para o saborearem, a ambição mantém-se.

“Em média, a cada 10 anos temos dois ou três razoavelme­nte bons, três médios e o resto é para esquecer.” A história da vinha do Pico é tão acidentada como a própria topografia da ilha. Entalada entre a montanha e o mar, conquistou uma certa reputação internacio­nal, de que Raul Brandão dá conta em As Ilhas Desconheci­das. O ano de 1852 trouxe à ilha do Pico uma desgraça com o nome de oídio e, 20 anos depois, haveria de surgir uma outra praga chamada filoxera. Foi o descalabro económico para proprietár­ios, morgados, barões, viscondes, fidalgos e outros “senhores” da ilha do Faial.

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A Cooperativ­a Vitiviníco­la da Ilha do Pico tem parceiros estratégic­os em 15 países, na UE, mas também no Brasil e Canadá.
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