Fernando Fernández
Criptomoedas, muito barulho por pouco dinheiro, por ora
Questões socioeconómicas como a privacidade, o acesso, a complementaridade com o efetivo e a manutenção da banca comercial serão determinantes para a velocidade de adaptação e o êxito desta transformação radical do nosso sistema financeiro.
As criptomoedas estão na moda, apesar de serem mais um jogo de azar e uma lotaria do que propriamente dinheiro. Os reguladores americanos estimavam recentemente que o montante de dinheiro digital em circulação chegasse aos 1,5 mil milhões de dólares. O dinheiro digital é o futuro, e todos nós – investidores, reguladores, economistas, banqueiros e jornalistas – parecemos sucumbir ao seu indiscutível apelo. Não obstante, já vimos umas quantas bolhas financeiras e uns quantos ativos que prometiam ser a solução mas que só trouxeram crise e ruína. Sem querer deprimir ninguém nem parecer antiquado, creio, porém, que não nos deveríamos esquecer das hipotecas de lixo, dos derivados complexos ou das malditas CDO.
A revolução digital está em marcha e a alterar as formas de pagar, poupar e investir. O negócio bancário já não é o que era – a sua rentabilidade vê-se ameaçada por tipos de juros mínimos históricos, uma regulação cada vez mais intrusiva e, acima de tudo, novos concorrentes digitais que ameaçam tomar o negócio. A digitalização do dinheiro permite que o setor privado crie dinheiro, que os bancos centrais prescindam dos bancos comerciais para o distribuir e garantir o seu valor e que os cidadãos façam os seus depósitos no telemóvel, sem intermediários.
Nós, os economistas, somos aves agourentas, pelo que não será de admirar que hesite um pouco perante esta paixão coletiva. O que é, exatamente, o dinheiro, hoje em dia? Um pedaço de papel, uma folha de cálculo, uma conta corrente, um cartão de crédito? O dinheiro é isso tudo e muito mais: é confiança. Uma das grandes invenções da Humanidade, nas palavras de Niall Ferguson, só comparável ao fogo, à roda, à penicilina e à pílula contracetiva. O dinheiro, contudo, tem de cumprir três funções elementares: servir de meio de pagamento, unidade de conta e depósito de valor, ou seja, servir para: (i) comprar bens e serviços, porque é aceite no mundo inteiro; (ii) contar e comparar valores e riquezas, porque o seu preço não muda muito com o tempo, e (iii) transferir valor no tempo e no espaço para ficar para os nossos filhos ou para pagar a nossa reforma. Tempos houve em que o dinheiro abundava e existiam muitos emissores desse ativo tão especial, mas o devir da História levou a que as sociedades mais avançadas, de maior êxito económico e social, acordassem em conceder a faculdade de criação de dinheiro exclusivamente a uma instituição especial a que chamaram “banco central”. Dotado de determinadas propriedades, independência técnica e económica, o banco central tinha como obrigações manter o valor do dinheiro e a estabilidade do sistema financeiro. É precisamente esse monopólio que o dinheiro digital ameaça.
Como esta revolução que está a começar, os conceitos e termos utilizados ainda são muito confusos e no debate público cruzam-se argumentos muito diferentes. Permitam-me que, como velho professor, tente pôr um pouco de ordem e clareza neste debate. Comecemos por distinguir entre as criptomoedas e o chamado dinheiro digital dos bancos centrais, mais conhecido pelo seu acrónimo inglês, CBDC. As primeiras são dinheiro privado, criado e garantido por empresas privadas, organizações de beneficência ou indivíduos admirados e respeitados; o segundo é uma nova forma de efetivo virtual.
Existem muitas criptomoedas diferentes, que têm sido criadas nos últimos 10 anos, mas duas delas tornaram-se particularmente populares: a bitcoin e a diem. A bitcoin tem tanto êxito que todos os bancos de investimento que se prezem a incluem atualmente nas suas carteiras de produtos e existem mercados específicos para a negociar. Já se fizeram grandes fortunas com a bitcoin, a sua revalorização foi incrível e temo que grandes ruínas – o que é normal com um ativo puramente especulativo. O seu apelo está na sua absoluta independência e descentralização, os famosos mineiros que, independentemente da sua voracidade energética, criam bitcoins segundo uma regra fixa. Essa independência, porém, também é a sua fraqueza, pois quem garantirá o seu valor em caso de desconfiança? Isto porque o seu preço sofre flutuações intoleráveis para qualquer aforrador ou investidor conservador. Não é dinheiro nem pode sê-lo – é outra coisa: um ativo para depositar a imensa liquidez gerada pelos bancos centrais com as suas políticas de expansão ilimitada; um depósito de valor para riquezas de origem duvidosa, e um meio de pagamento para transações ilícitas.
A libra, uma criptomoeda frustrada, sim, queria ser dinheiro. O seu criador, o Facebook, prometia competir com os bancos centrais, oferecer um meio de pagamento seguro e estável. Para isso foi concebida como um cesto de moedas que manteria o seu valor relativamente a uma média ponderada de dólares, libras esterlinas e remimbis chineses. O que, na prática, obrigava o Facebook a criar uma sala de mercados de intensa atividade diária, para garantir esse tipo de câmbio. O seu fracasso é uma boa amostra das dificuldades de reproduzir as práticas da estabilidade das divisas que já são moedas de reserva internacional, um exemplo para todas essas stable coins que prometem o mesmo. Isto porque a pergunta que importa é se, em situação de crise, preferíamos ter libras ou dólares, e não libras ou pesos argentinos ou bolívares de Maduro – portanto, se nos fiamos mais em Zuckerberg ou na Reserva Federal e no império americano.
Tal foi seu êxito, porém, que a libra abriu uma nova era – a era das CBDC –, despertando os bancos centrais e os bancos comerciais para a possibilidade de o monopólio acabar e para a necessidade de agir. Os bancos comerciais aperceberam-se de que o sistema de pagamentos grossistas e internacionais é muito caro e ineficiente e que das duas uma: ou lideram a sua digitalização ou o perdem. Aliás, até já poderá ser demasiado tarde. Quanto aos bancos centrais, a libra obrigou-os a entrar na corrida digital, criando o seu próprio dólar, euro ou remimbi digital. A Jamaica, o Uruguai e a Suécia já não são os únicos países que introduziram ou estão prestes a introduzir uma moeda digital com curso legal – todos os bancos centrais das jurisdições financeiras mais avançadas estão a fazê-lo. O Banco Central Europeu publicou um livro branco sobre o euro digital e adotará uma política explícita a esse respeito este verão. Em maio, a Reserva Federal demonstrou-se recetiva ao dólar digital. São muitos os problemas pendentes, mas os mais importantes não são os tecnológicos. Questões socioeconómicas como a privacidade, o acesso, a complementaridade com o efetivo e a manutenção da banca comercial serão determinantes para a velocidade de adaptação e o êxito desta transformação radical do nosso sistema financeiro.
Para ilustrar a magnitude do desafio, permitam-me concluir com três “pequenos” problemas a resolver: a soberania monetária, a estabilidade financeira e a sobrevivência dos bancos comerciais privados. Um dólar digital de livre acesso internacional acabaria com a independência da política monetária de muitos países. Porque haveríamos nós de continuar a utilizar uma moeda volátil e inútil para pagar na Amazon? Com uma moeda digital, como poderíamos nós evitar que as corridas aos bancos e as crises externas fossem imediatas e recorrentes, com um simples clique, ao mínimo rumor de debilidade? Se têm acesso a uma wallet digital ou a uma conta corrente no banco central, porque haverão os particulares de guardar os seus depósitos num banco? E sem o financiamento dos depósitos, que hipóteses de sobrevivência terão os bancos retalhistas? E o que seria do crédito se o banco central detivesse todos os passivos do sistema? Voltaríamos ao crédito direto? As respostas para todas estas perguntas requerem uma análise exaustiva e cuidadosa, porque a sociedade teria muito a ganhar com a correta transformação digital dessa maravilhosa invenção social que é o dinheiro.