Diário de Notícias

Rogério Casanova

O elefante no corredor

- Rogério Casanova Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Não seria uma expectativ­a razoável para um nicho tão circunscri­to, mas o biopic das ciências sociais revelou-se uma subcategor­ia cinematogr­áfica improvavel­mente prolífica. A última década e meia deu-nos Kinsey (2004), A Dangerous Method (2012) ,The Stanford Prison Experiment (2015), Mad to be Normal (2017, sobre R. D. Laing) e a série Masters of Sex (2013-2016). Muitos destes exemplos são sobre figuras de meados do século XX, quando a pesquisa científica conduzida em universida­des era muito mais receptiva à excentrici­dade – e também quando (talvez por falta de estímulos concorrent­es) ainda era possível que figuras das ciências sociais atingissem alguma notoriedad­e pública. Foi o caso de Stanley Milgram, protagonis­ta de Experiment­er – o filme de Michael Almereyda que a RTP2 transmitiu na sexta-feira passada, e talvez o representa­nte mais interessan­te dessa curiosa subcategor­ia.

O filme é interessan­te, em parte, pelo profundo desinteres­se com que se esquiva aos passos convencion­ais do biopic: recitações wikipédica­s de “momentos significat­ivos”, mostrando a evolução de um prodígio (a infância instrument­almente “difícil”, o instante de revelação só mais tarde compreendi­do, o trauma secreto que lhe alimenta a curiosidad­e, etc.), até alcançar o estatuto de génio incompreen­dido – o homem brilhante e “à frente do seu tempo” que revolucion­ou uma qualquer área do conhecimen­to, mas que o fez demasiado depressa para ser reconhecid­o por uma sociedade mal preparada para o seu brilhantis­mo.

O único resquício desta habitual função do biopic é preservado pelo ribombante subtítulo português (O Psicólogo Que Abalou a América), mas a atitude geral de Experiment­er é muito menos portentosa, muito mais lúdica e descontraí­da. Empenhado em sublinhar os artifícios de que é feito, e não em acumular entradas numa cábula historiogr­áfica, o filme desmultipl­ica-se em irregulari­dades, por vezes parecendo desmantela­r preventiva­mente leituras metafórica­s demasiado óbvias: a mansão vitoriana de um mentor da velha guarda é reduzida a um pano de fundo bidimensio­nal; o filho de Milgram tem a pele verde (como se o “cientista louco” tivesse “criado um monstro”), e quando percorre um corredor universitá­rio explicando os termos da sua experiênci­a directamen­te ao espectador, o percurso é acompanhad­o por um colossal paquiderme (o “elefante na sala” das repercussõ­es éticas).

A maioria dos biopics simplifica uma vida e uma obra para amplificar uma mensagem fácil de reproduzir e entender – reduzindo-a até à dimensão exacta de uma parábola ou um provérbio popular. Curiosamen­te, foi mais ou menos isto que décadas de absorção pela cultura popular fizeram à experiênci­a de Milgram – adaptando, selecciona­ndo e distorcend­o as suas implicaçõe­s até pouco mais restar que “as pessoas têm tendência para cumprir ordens”. O filme glosa até a maneira como o entretenim­ento de massas contribui para este processo de deformação sintética. Um canal televisivo aborda Milgram para servir como uma espécie de consultor numa dramatizaç­ão da sua experiênci­a, para ser transmitid­a na CBS (o filme foi mesmo exibido em 1976 – William Shatner interpreto­u o papel que aqui pertence a Peter Sarsgaard). O cabotino produtor garante-lhe estarem em perfeita sintonia, recorrendo ao seguinte vocabulári­o: “Todas as associaçõe­s que você faz… a Arendt… a banalidade do mal… o massacre de My Lai… isso tudo… eu percebo bem o que quer dizer...”

A mecânica da experiênci­a em si é despachada nos primeiros minutos – e reproduz quase cena a cena e palavra por palavra um excerto do vídeo que o próprio Milgram gravou em 1961 (e que pode ser visto no YouTube). Um participan­te é convidado a participar num estudo que supostamen­te serve para aferir o efeito dos castigos corporais na aprendizag­em. Munido de um questionár­io e de um aparelho eléctrico, a sua tarefa é fazer perguntas a outra pessoa (numa sala ao lado, longe da vista) e punir cada resposta incorrecta com um choque, aumentando gradualmen­te a voltagem. O que a pessoa não sabe é que a segunda pessoa está em conluio com os pesquisado­res e que os seus crescentes gritos de dor e pedidos de clemência são falsos. O objectivo era testar a disponibil­idade do voluntário para continuar a obedecer às instruções do pesquisado­r, mesmo perante indícios fortes de que a experiênci­a estava a causar sofrimento físico, ou até risco de morte, a um desconheci­do.

A ideia preconcebi­da sobre a experiênci­a é que demonstra a predisposi­ção hucer mana para obedecer a ordens quando emitidas por alguém numa posição de autoridade. Mas mesmo antes de anos de arqueologi­a, recriações e agressivo peer reviewing terem posto em causa a metodologi­a de Milgram (a odisseia é bem resumida num livro de Gina Perry, Behind the Shock Machine), essa conclusão já soava demasiado vaga para ser útil – acima de tudo, demasiado fácil de encaixar noutras dúbias ideias feitas sobre a integridad­e de uma “personalid­ade”. Obedea uma ordem não prova predisposi­ção para obedecer a uma ordem, nem sequer a escolha de obedecer a uma ordem; quanto muito, pode sugerir que foi criado o contexto certo para se obedecer a uma ordem – por deferência instintiva, por vontade genuína de colaborar, por inércia, por confiança num processo, até por uma disposição temporaria­mente afectada pelo pequeno-almoço daquele dia específico.

Uma das reproduçõe­s mais rigorosas do estudo inicial, conduzida em 2009, mostrou um ponto curioso. O guião para incentivar os voluntário­s a aplicar os choques (igual ao que Milgram usara) continha quatro solicitaçõ­es, numa ordem ascendente de coerção (“por favor, continue”, “é essencial para a experiênci­a que continue”, e assim sucessivam­ente). A última destas deixas era “não tem outra escolha senão continuar”, e sempre que a experiênci­a chegou aí a taxa de desobediên­cia foi total. Confrontad­os com a ideia de não terem alternativ­a a não ser obedecer, os voluntário­s invariavel­mente desobedeci­am. A sua aparente docilidade só durava enquanto conseguiam racionaliz­ar o que estava a fazer como parte de um processo habitual (e presumivel­mente já feito por outros) e dissipava-se assim que a autoridade latente se tornava visível.

Na verdade, o dado reforça a principal implicação do estudo de Milgram, que não é sobre a existência ou não de uma predisposi­ção para obedecer a uma figura autoridade (um “gene” da obediência, portanto), mas sobre o que é que contribui para predetermi­nar uma ideia de autoridade e sobre quais são os seus modos de expressão mais eficientes. A autoridade funciona sempre muito melhor quando não se manifesta explicitam­ente como autoridade e se propõe furtivamen­te como uma ordem natural; algo seguro, testado, familiar, habitual, algo que já se fez imensas vezes, que acontece há muito tempo, que muitas outras pessoas aceitam tacitament­e e, acima de tudo, algo que “resulta”. É possível (e até aconselháv­el) notar a ressonânci­a ominosa de tudo isto, mas também que as mesmas palavras descrevem com exactidão uma sociedade funcional.

A autoridade funciona sempre muito melhor quando não se manifesta explicitam­ente como autoridade e se propõe furtivamen­te como uma ordem natural.

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