João Lopes
Era uma vez o cinema
Quentin Tarantino é um genuíno cinéfilo: alguém que filma a partir de memórias precisas da história do cinema, não para as congelar numa nostalgia complacente, antes revendo-as e reinventando-as como coisa do presente. O seu filme de 2019 Era Uma Vez em Hollywood constitui um exemplo modelar de tal atitude.
Aí revisitamos o ano de 1969, nos cenários da “fábrica de sonhos” da Califórnia, reconvertidos pela emergência de novos protagonistas ligados ao poder crescente da televisão. As personagens interpretadas por Leonardo Di Caprio e Brad Pitt são sintomas dessa conjuntura: figuras de um novo tempo, em que persiste a herança da idade de ouro de Hollywood, mesmo se já não parece possível refazer o seu poder mitológico.
Ilustrando a elaborada consciência crítica das raízes estéticas e simbólicas do seu trabalho, Tarantino acaba de lançar uma “novelização” do seu filme, adotando o formato de bolso e o visual dos tradicionais romances policiais (Pulp Fiction). O livro Once Upon a Time in Hollywood (HarperCollins) surgiu, assim, como expressão de uma ancestral relação de amor – entre a narrativa cinematográfica e o desejo literário da escrita.
Tarantino tem dado várias entrevistas sobre esta estreia como romancista, afinal um prolongamento do seu trabalho como escritor de argumentos: foi, aliás, como argumentista que já ganhou dois Óscares, com Pulp Fiction (1994) e Django Libertado (2012). Há dias, no programa The Jess Cagle Show, da rádio Sirius XM, falou das memórias de Sharon Tate (1943-1969) e do seu tratamento enquanto personagem de Era Uma Vez na América. centa que um dos aspetos de que se orgulha é o facto de, “depois do filme”, já não ser definida dessa maneira. Graças ao filme, e à composição de Margot Robbie, deixou de ser vista através com o “estatuto de vítima” – é alguém “com significado”, e não apenas uma “estatística”.
Poderemos recordar que para muitos cinéfilos, em particular os jovens espectadores das décadas de 60/70, Tate nunca foi uma mera “estatística”, quanto mais não fosse por causa do seu protagonismo no popularíssimo Por Favor, Não Me Morda o Pescoço (1967), homenagem paródica de Polanski aos filmes de vampiros, que, subtilmente, se vai transformando em fábula política. Mas as palavras de Tarantino não envolvem apenas a preservação dessas memórias.
De que se trata então? Em boa verdade, creio que aquilo que está em jogo é o poder social e simbólico do cinema. Quando refere a alteração da perceção de Sharon Tate através do seu filme, Tarantino está a celebrar o cinema não como um entretenimento abstrato,