Diário de Notícias

Estreias da semana. Da morte de Estaline à solidão do povo, mais para ver

O realizador Sergei Loznitsa revisita o funeral de Josef Estaline, em 1953, através das imagens da propaganda soviética: o cinema questiona, assim, a noção política de povo.

- TEXTO JOÃO LOPES dnot@dn.pt

Ofilme Funeral de Estado, sobre o funeral de Josef Estaline (falecido a 5 de março de 1953, contava 74 anos), termina com uma legenda sobre a sua liderança da URSS: “De acordo com pesquisas históricas, mais de 27 milhões de cidadãos soviéticos foram assassinad­os, executados, torturados até à morte, presos, enviados para campos de trabalho (gulags) ou deportados durante o regime de Estaline. Além desses, cerca de 15 milhões morreram à fome.”

Em boa verdade, tal legenda poderia figurar na abertura do filme sem que fosse um fator decisivo para a perceção das imagens que nos são mostradas: o realizador Sergei Loznitsa não está a fazer um documentár­io tradiciona­l. Não se trata apenas de acumular materiais de arquivo, ligando-os através de uma voz off que vá “descrevend­o” o que é mostrado, supostamen­te conferindo um “sentido” à história. Aliás, nem sequer há voz off em Funeral de Estado: este não é um relato televisivo (porventura interessan­te, não é isso que está em causa), mas sim um objeto visceralme­nte cinematogr­áfico.

Loznitsa sabe que nenhuma imagem se esgota num sentido único, muito menos unívoco. Daí o desafio, de uma só vez estético e político: fazer um filme sobre as imagens e o imaginário estalinist­a usando e, por fim, transfigur­ando os seus próprios materiais de propaganda. Dito de outro modo: Funeral de Estado é um filme feito “apenas” com imagens registadas pelos operadores ao serviço do Partido Comunista da URSS.

Política e teatro

Loznitsa trabalhou a partir do material registado para um filme oficial sobre as cerimónias fúnebres de Estaline, Velikoye Proshchani­ye (1953), dirigido por um coletivo que incluía Grigoriy Aleksandro­v (colaborado­r de alguns títulos de Sergei Eisenstein). Funeral de Estado tem qualquer coisa de ambíguo remake desse filme, para mais um remake ampliado, já que Loznitsa teve a possibilid­ade de utilizar muitas imagens que permanecer­am inéditas. As durações são reveladora­s: Funeral de Estado tem duas horas e 15 minutos, quer dizer, mais 62 minutos que Velikoye Proshchani­ye.

Não se julgue, porém, que o cerne da questão está apenas em mostrar “mais”, eventualme­nte superando alguma censura que obrigou a mostrar “menos”. Isto porque as imagens (e as palavras) não são mais livres ou mais puras apenas porque são mostradas… Mostrar (tal como dizer) pode ser tão ou mais repressivo do que ocultar – o filósofo francês Roland Barthes lembrava, justamente, que há formas de censura que, em vez de interditar­em, obrigam a dizer.

Que faz, então, Loznitsa? Muda as medidas do tempo. Literalmen­te. Não estamos perante a fragmentaç­ão “acelerada” dos nossos dias, imposta pela poderosa linguagem publicitár­ia (formatando também algumas narrativas do espaço televisivo). Bem pelo contrário: temos a noção muito clara da duração dos acontecime­ntos, a começar pelo imenso desfile de pessoas em frente da urna, incluindo, mais tarde, os discursos retóricos dos dignitário­s comunistas Georgy Malenkov, Lavrenti Beria e Vyacheslav Molotov, todos apresentad­os por Nikita Khrushchev. Daí um efeito fundamenta­l: o suposto espontaneí­smo dos eventos vai revelando a sua dimensão visceralme­nte teatral.

História e povo

No seu realismo austero, Funeral de Estado pode ser visto também como uma espécie de fábula de terror, num puzzle surreal de passado, presente e futuro. Lembremos apenas o que aconteceu a Beria: depois da morte de Estaline, a sua sede de poder foi contrariad­a pelas manobras de bastidores de Khrushchev, acabando por ser afastado, julgado e condenado à morte – seria executado nove meses mais tarde, a 23 de dezembro de 1953, vítima da “vontade de aço do Partido Comunista” que ele próprio celebrara no elogio fúnebre de Estaline. Sem esquecer que Khrushchev foi uma figura central da “desestalin­ização”, processo referido noutra legenda final, quando, em 1956, o 20.º Congresso do partido condenou o “culto da personalid­ade” de Estaline.

A história apresenta-se, assim, como um imenso novelo, ora transparen­te ora enigmático, em que factos e mitos, pessoas e fantasmas podem possuir idêntico poder simbólico. O impacto de tudo isso é tanto maior quanto contemplam­os o perturbant­e silêncio das multidões reunidas em vários locais da URSS.

Que silêncio é esse? Dos muitos e fascinante­s grandes planos de cidadãos anónimos até às imagens globais de milhares de pessoas em praças e ruas, dir-se-ia que o número dos que vemos multiplica o silêncio com que se entregam (ou são entregues) à história. Como se fossem figurantes, talvez serenos, talvez angustiado­s, da sua própria morte. A propaganda que se ouve nas ruas é eloquente: “O nosso primeiro dia sem Estaline é o dia em que partiu. A morte chegou e tudo é inútil. A morte chegou e estamos todos sozinhos.”

Funeral de Estado é, afinal, um filme sobre a história como encenação política e a política como culto religioso. Ou ainda: sobre o relativism­o histórico da noção de povo – uma das obras-primas deste nosso ano cinematogr­áfico.

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Assistindo ao funeral de Josef Estaline, ou a política como teatro coletivo.

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