Frankfurt mais perto do que se imagina
Apesar de ter passado mais de uma década, os portugueses têm clara memória dos tempos em que as agências de rating classificaram a dívida pública portuguesa como especulativa, o chamado “lixo”, levando a uma enorme subida das taxas de juro e à incapacidade de o país se financiar nos mercados.
Incompetentes a identificar os riscos das grandes corporações financeiras que ruíram como castelos de cartas, as agências de rating lideravam agora a caçada dos grandes especuladores financeiros, identificando os próximos alvos. Tinha acontecido com a Grécia, Portugal era a vítima do momento, adivinhava-se quem seriam as próximas. A crise financeira internacional transformara-se na crise das dívidas soberanas.
A revolta contra estas agências era compreensível, mas falhava um aspeto essencial. Tinha sido o BCE, em 2005, a decidir que a aceitação da dívida pública como colateral estaria dependente da notação das agências de rating. Consequentemente, uma má notação criava o risco de a dívida deixar de ser aceite pelo BCE, aumentando automaticamente o seu risco e deixando-a à mercê dos especuladores.
A atribuição de todo esse poder a entidades privadas, não escrutinadas, era altamente questionável, mas correspondia à crescente influência da doutrina liberal sobre a política e a regulação económicas.
Não foi, portanto, uma decisão técnica, mas profundamente política. Poucos anos depois, todos sentiríamos as suas consequências.
O quase colapso do euro só foi travado com o famoso “custe o que custar” com que Mario Draghi, em 2012, se comprometeu a salvar a moeda única. Uma afirmação, também ela, profundamente política.
De então para cá, a política monetária do BCE tem mantido essa orientação, reforçando-se até em resposta à pandemia, o que foi essencial para que a crise covid não tenha sido acompanhada de uma crise financeira, gerando a tempestade perfeita.
Mas tal não tem sido feito sem contestação. Parte da direita europeia tem defendido que o BCE deve inverter a sua política de manutenção de juros baixos. Mais uma vez, querem deixar o mercado com menos ação da política monetária.
Mas a atual política do BCE tem sido essencial para o crescimento económico e o emprego, particularmente na resposta a esta crise. Confiar na “mão invisível dos mercados” dá naquilo que já vimos no passado. Se os custos do empréstimo das casas, do financiamento das empresas e da dívida pública subirem, alguns poucos ganharão com isso. Mas a grande maioria perderá.
Foi neste contexto extremamente politizado que o BCE aprovou, no início do mês, a sua nova estratégia de política monetária. Ao definir um alvo ligeiramente mais alto para a inflação – em torno de 2% (simétrico), em vez de ligeiramente abaixo de 2% –, o BCE está a sinalizar que não será uma subida pontual da inflação (como a que agora ocorre) que o fará alterar a sua política monetária. Pelo contrário, a nova estratégia reforça a confiança económica e dos mercados numa maior margem de atuação da política monetária, em particular quando ocorrerem choques macroeconómicos profundos ou com efeitos diferentes entre países.
Uma excelente notícia para países como Portugal, mas também para as classes médias e baixas de toda a Europa. Não é uma notícia tão boa para os mais ricos. Mas a vida é feita de escolhas. O BCE escolheu bem.