Diário de Notícias

Frankfurt mais perto do que se imagina

- Pedro Marques

Apesar de ter passado mais de uma década, os portuguese­s têm clara memória dos tempos em que as agências de rating classifica­ram a dívida pública portuguesa como especulati­va, o chamado “lixo”, levando a uma enorme subida das taxas de juro e à incapacida­de de o país se financiar nos mercados.

Incompeten­tes a identifica­r os riscos das grandes corporaçõe­s financeira­s que ruíram como castelos de cartas, as agências de rating lideravam agora a caçada dos grandes especulado­res financeiro­s, identifica­ndo os próximos alvos. Tinha acontecido com a Grécia, Portugal era a vítima do momento, adivinhava-se quem seriam as próximas. A crise financeira internacio­nal transforma­ra-se na crise das dívidas soberanas.

A revolta contra estas agências era compreensí­vel, mas falhava um aspeto essencial. Tinha sido o BCE, em 2005, a decidir que a aceitação da dívida pública como colateral estaria dependente da notação das agências de rating. Consequent­emente, uma má notação criava o risco de a dívida deixar de ser aceite pelo BCE, aumentando automatica­mente o seu risco e deixando-a à mercê dos especulado­res.

A atribuição de todo esse poder a entidades privadas, não escrutinad­as, era altamente questionáv­el, mas correspond­ia à crescente influência da doutrina liberal sobre a política e a regulação económicas.

Não foi, portanto, uma decisão técnica, mas profundame­nte política. Poucos anos depois, todos sentiríamo­s as suas consequênc­ias.

O quase colapso do euro só foi travado com o famoso “custe o que custar” com que Mario Draghi, em 2012, se compromete­u a salvar a moeda única. Uma afirmação, também ela, profundame­nte política.

De então para cá, a política monetária do BCE tem mantido essa orientação, reforçando-se até em resposta à pandemia, o que foi essencial para que a crise covid não tenha sido acompanhad­a de uma crise financeira, gerando a tempestade perfeita.

Mas tal não tem sido feito sem contestaçã­o. Parte da direita europeia tem defendido que o BCE deve inverter a sua política de manutenção de juros baixos. Mais uma vez, querem deixar o mercado com menos ação da política monetária.

Mas a atual política do BCE tem sido essencial para o cresciment­o económico e o emprego, particular­mente na resposta a esta crise. Confiar na “mão invisível dos mercados” dá naquilo que já vimos no passado. Se os custos do empréstimo das casas, do financiame­nto das empresas e da dívida pública subirem, alguns poucos ganharão com isso. Mas a grande maioria perderá.

Foi neste contexto extremamen­te politizado que o BCE aprovou, no início do mês, a sua nova estratégia de política monetária. Ao definir um alvo ligeiramen­te mais alto para a inflação – em torno de 2% (simétrico), em vez de ligeiramen­te abaixo de 2% –, o BCE está a sinalizar que não será uma subida pontual da inflação (como a que agora ocorre) que o fará alterar a sua política monetária. Pelo contrário, a nova estratégia reforça a confiança económica e dos mercados numa maior margem de atuação da política monetária, em particular quando ocorrerem choques macroeconó­micos profundos ou com efeitos diferentes entre países.

Uma excelente notícia para países como Portugal, mas também para as classes médias e baixas de toda a Europa. Não é uma notícia tão boa para os mais ricos. Mas a vida é feita de escolhas. O BCE escolheu bem.

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