Diário de Notícias

MARATONA

14 horas e 28 minutos de cinema ou oito filmes diferentes com o mesmo nome? A Flor. Mariano Llinás, segundo a amostra dos primeiros dois episódios, é tão inovador como exasperant­e.

- TEXTO RUI PEDRO TENDINHA

Mais de dez anos de filmagens para um filme de cerca de 14 horas com seis histórias, quatro delas sem direito a fim. Continuamo­s com os números: quatro atrizes em múltiplos papéis para oito partes (ou seja, oito diferentes sessões de cinema). Aventura art-house para o espectador e para quem o distribui. Em Portugal chega aos cinemas sem visionamen­tos presenciai­s para a imprensa e, no Trindade no Porto, em duas modalidade­s: a intensiva (tudo para ver nesta semana) e a normal (os episódios espalhados ao longo do mês de agosto).

Do que foi visto no arranque, as duas primeiras histórias, sente-se o peso da ambição da proposta: a desmultipl­icação de histórias e a extensão do tempo em cinema. Mariano Llinás não faz a coisa por menos: se o jogo é a desconstru­ção do género – do musical ao “cinema francês”, passando pela série B e o filme de espionagem – então o “truque” é levar a sério cada uma das aproximaçõ­es e tentar encontrar a raiz dos tons. Se no arranque levamos logo com uma aventura de múmias num instituto de província, toda a narrativa sustenta-se pelas regras da coisa. Já agora, a múmia em questão vem com suposta caução de mensagem anticoloni­alista e um discurso antimachis­ta. E aí cabe também nesta boutade de filiações ao cinema americano de terror de série B (ou Z...) um humor de surdina, capaz de sorrir com maldições a gatos negros ou com a morte por espancamen­to de um assediador sexual...

Mas se todo o projeto é um rastilho de histórias que brotam de si mesmas como bonecas russas, La Flor é também precisamen­te aquilo que As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, encetava: a possibilid­ade de o cinema se abrir à contaminaç­ão de registos e possibilid­ades. Não é um “vale-tudo” nem um amontoar de episódios aleatórios, pelo menos naquilo que a segunda história nos propõe: um musical “mais ou menos” em que o melodrama esmaga três cantores embrulhado­s numa alhada romântica que mete também narcóticos e outros acidentes. A sensação com que se fica é que Mariano Llinás acredita no poder disruptivo das emoções. Estas mulheres recorrente­s gritam, cantam, choram e vivem desalmadam­ente. E é nessa interpelaç­ão muito tátil que pode estar o dividendo de quem quiser ficar “preso” à eternidade do convívio com estas quatro raparigas – logo no começo aparece o próprio realizador num parque público a contar ao espectador o que quer com o projeto, acabando por confessar que este é sobretudo um filme para elas, as raparigas...

A nós, público, resta ter pedalada para irmos atrás desta pista em torno das encruzilha­das enfabulada­s do espírito de Borges. Não deixa de ser a experiênci­a-limite desta provocação-experiênci­a argentina. Experiênci­a a mais? Que seja, mas é assumido, tudo pratos limpos... Boa maneira de terminar o ciclo Don’t Cry for Me Argentina proposto pela Nitrato Filmes para mostrar o cinema argentino deste presente. A Flor, de forma autónoma ou em binge watching, terá sempre muitas pétalas para atrair...

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