À beira dos 50 anos, Imagine foi tema dos Olímpicos. Memórias pacifistas e políticas
A POUCAS SEMANAS DO 50.º ANIVERSÁRIO DE IMAGINE, A CANÇÃO DE JOHN LENNON FOI TEMA DOS JOGOS OLÍMPICOS: SÃO MEMÓRIAS DE UM PACIFISMO ENRAIZADO NAS CONVULSÕES POLÍTICAS DOS ANOS 1960.
Apresença da canção Imagine, de John Lennon, na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio (a decorrer até 8 de agosto), funcionou como um perverso evento cultural. Quase meio século depois – a canção pertence ao álbum homónimo de Lennon, lançado a 9 de setembro de 1971 –, as suas palavras continuam a desencadear reações muito contrastadas, da celebração olímpica até à contestação do espírito da canção.
Mas qual é, afinal, o espírito da canção? Não é possível responder de forma única, muito menos uníO voca. A simples existência da pergunta acaba por ser reveladora do poder intemporal da escrita poética, transcendendo o contexto em que nasceu, relançando a sua energia em cada nova leitura ou audição. Ou em cada gravação por outros artistas: segundo uma investigação de 2020 do site inglês WhoSample, Imagine está no n.º 9 do top das canções com mais versões (o primeiro lugar pertence a Yesterday, dos Beatles, composição que Lennon assina com Paul McCartney). Nessas versões alternativas podemos até incluir o registo do próprio Lennon, apenas com piano (sem o arranjo de Phil Spector), revelado na monumental reedição do álbum em 2018.
Desde os primeiros versos, Lennon convoca-nos para uma imaginação em que já não existe céu (Imagine there’s no heaven), garantindo-nos que tudo será fácil desde que estejamos disposto a isso (It’s easy if you try). Dispensando as alturas divinas do céu, também já não seremos sugados pelas profundezas do inferno (No hell below us). Que teremos, então, a pairar sobre as nossas cabeças? Pois bem, apenas céu… Não o mesmo céu, entenda-se, mas um outro céu que a língua inglesa identifica como puramente natural: a palavra divina, “heaven”, dá lugar à designação corrente, dir-se-ia meteorológica, de “sky”(Above us only sky).
Não será preciso grande ginástica mental para percebermos que a interpretação literal da escrita nunca é a via mais estimulante para conhecermos os sobressaltos da poesia. O que, ainda assim, voltou a acontecer. Na revista Vanity Fair (23 julho), Erin Vanderhoof, não sem alguma calculada ironia, perguntava o que poderá significar uma canção que apela a que imaginemos um mundo em que já não haja países (Imagine there’s no countries) quando interpretada numa festa olímpica em que participam nada mais nada menos que 205… países?
Robert Barron, bispo auxiliar de Los Angeles, vai mais longe. Num vídeo colocado no seu canal do YouTube – uma versão condensada do respetivo texto foi publicada, no dia 25, pelo New York Post –, depois de se afirmar fã dos Beatles (e, em especial, de Lennon), Barron define Imagine como uma canção que “apela ao caos moral e político”. Porquê? Porque “dizer que não há céu nem inferno é o mesmo que dizer que não há qualquer critério para distinguir o bem e o mal”. Insurge-se ainda contra o modo como Lennon formula a hipótese de um mundo sem posses (Imagine no possessions), lembrando que os quatro intérpretes da canção nos Jogos Olímpicos – Angelique Kidjo, John Legend, Alejandro Sanz e Keith Urban – são todos eles milionários… E deixa um curioso voto: “Abdicarei das minhas posses quando eles abdicarem das suas”. voto é tanto mais sugestivo quanto a respetiva redação no New York Post se apresenta ligeiramente diferente: “Penso que todos nós devíamos abdicar das nossas posses quando eles abdicarem das suas”.
DEPOIS DOS BEATLES
Dizia Herberto Helder: “Eu procuro dizer como tudo é outra coisa”. Aceitando essa perturbação que nos ensina a ver a “outra coisa” de cada evidência, valerá a pena lembrar que Imagine nasceu num contexto bem diferente deste nosso mundo de comparações automáticas, partilhas globais e redes de difamações e insultos muito “sociais”.
O primeiro “significado” do álbum Imagine não é estranho à vontade de encerrar as convulsões que marcaram o fim dos Beatles – não sem uma canção especialmente agreste contra Paul McCartney, perguntando-lhe como é que ele consegue dormir (How Do You Sleep?). Lennon desenhou um autorretrato terno e cruel em que, de facto, “imaginava” um mundo em que conseguisse vencer os seus próprios fantasmas, superando os momentos de instabilidade emocional (Crippled Inside) ou de vicioso ciúme (Jealous Guy). Existe, aliás, um telefilme de 1972, também intitulado Imagine, que é uma espécie de “filme de família” sobre as gravações do álbum – é daí que provém a imagem lendária de Lennon, num piano branco, com Yoko sentada no chão. Yoko é mesmo coautora da canção Imagine, facto cujo reconhecimento, na sequência de um complexo processo jurídico, só foi oficializado pela National Music Publishers Association
em 2017 (37 anos depois do assassinato de Lennon).
Um ano antes do lançamento de Imagine, mais exatamente a 10 de abril de 1970, Paul McCartney já respondera com um simples “não” à possibilidade de renovação da dupla criativa Lennon-McCartney (dominante na composição das canções dos Beatles). Faltava apenas uma semana para McCartney lançar o seu primeiro registo a solo (McCartney) e já todos os outros membros do quarteto tinham editado álbuns em nome próprio, incluindo três LP experimentais de Lennon & Yoko Ono, o último dos quais, Wedding Album, surgira em outubro de 1969. O derradeiro álbum dos Beatles, Let It Be, foi posto à venda a 8 de maio de 1970, cerca de um mês depois de McCartney nos ter avisado que… já não havia Beatles.
Tudo isto acontecia num mundo em que a politização da música rock era um facto insofismável. A começar pela folk de Bob Dylan, muito do que se compunha e cantava apresentava-se contaminado pela urgência moral, inevitavelmente política, de pelo menos dois temas que provinham dos EUA, atravessando fronteiras, rasgando todos os domínios criativos da música (do cinema, da literatura, etc.)
Que temas eram esses? As lutas pelos direitos civis dos negros e a resistência à guerra do Vietname.
Lennon eYoko Ono tinham protagonizado uma forma peculiar de protesto contra a guerra, organizando duas conferências de imprensa em que se apresentaram… na cama. Aconteceu em março de 1969, em Amesterdão, e em maio/ /junho do mesmo ano, em Montreal: durante uma semana, em determinado período de cada dia, o casal recebia os jornalistas, dissertando sobre os efeitos da guerra e a possibilidade da paz, mantendo-se serenamente na sua cama (bed). Gerando as mais variadas controvérsias, esses “bed-ins” (por analogia com os “sit-ins”, assembleias com objetivos especificamente políticos) decorriam de um estado de coisas em que a consciência política dos indivíduos e a ação, também política, dos grupos eram assuntos de permanente discussão e reavaliação.
Cerca de um ano antes, os acontecimentos de maio de 68, em França, tinham servido de mote para muitos vetores dessa dinâmica. Há uma clara cumplicidade simbólica entre o desejo de imaginação do Imagine de Lennon e a mais célebre palavra de ordem do maio parisiense: “A imaginação ao poder”. Sem esquecer que em agosto de 1969, poucos meses depois dos bed-ins do casal Lennon, acontecia o festival de Woodstock, cristalizando a multifacetada expressão de um desejo de paz (“três dias de paz e música”). Pelo menos no interior dos EUA, esse desejo ia-se agudizando através do conhecimento das mortes de jovens soldados no Vietname, conhecimento em grande parte sustentado pelo trabalho de algumas publicações da imprensa mais liberal, como a revista Life.
“NÃO QUERO MORRER”
Uma das canções de Imagine prolonga o lirismo utópico do tema-título, especulando sobre a possibilidade de envolvimento numa situação de guerra. Intitula-se I Don’t Want to Be a Soldier e tem como primeiro verso: “Não quero ser um soldado, mãe, não quero morrer”. Por ela perpassa um pacifismo que não é estranho a outras intervenções públicas de Lennon, nomeadamente a canção Happy Xmas (War Is Over), com a Plastic Ono Band, tema de Natal lançado ainda em 1971 nos EUA (um ano mais tarde no Reino Unido), hoje em dia um verdadeiro standard natalício.
Todas estas formas de militância – militância artística para interrogar a política – apresentam-se enredadas com um imaginário (e uma imaginação) que, com mais ou menos ilusões e equívocos, circulou pelos anos 60. Os Beatles, justamente, também “personificaram” esse imaginário no filme O Submarino Amarelo (1968), desenho animado dirigido por George Dunning em que o quarteto protagonizava um combate épico, poético e sarcástico, contra as personagens malignas, Blue Meanies, usando como arma aquilo que eles detestavam. A saber: a música, as canções.
Ainda com os Beatles a funcionarem em pleno, Lennon participou, como ator, em How I Won the War (1967), produção britânica exemplar dessa vaga “anarcopoética” que atravessou a década de 1960, na altura proibido em Portugal por causa do seu discurso pacifista (tal como, dois anos mais tarde, Oh! What a Lovely War, de Richard Attenborough). How I Won the War é uma comédia de delirante registo burlesco que prolonga o sentido experimental do trabalho do tão esquecido Richard Lester, afinal o realizador que “inventou” o visual cinematográfico & televisivo dos Beatles nas longas-metragens A Hard Day’s Night (1964) e Help! (1965).
O “renascimento” olímpico de Imagine carece, por tudo isto, de memória. Aliás, a canção já tinha sido usada em 2012, nos Jogos Olímpicos de Londres, e em 2018, nas olimpíadas de inverno, em Pyeongchang, na Coreia do Sul. Como se nos fôssemos esquecendo das canções que, realmente, são propriedade dos nossos afetos e da nossa cultura – são canções que, em frágeis sobressaltos de felicidade, deram alguma razão à nossa imaginação.
TOCADA NA CERIMÓNIA DE ABERTURA DOS JOGOS OLÍMPICOS DE TÓQUIO, IMAGINE ESTÁ, SEGUNDO UMA INVESTIGAÇÃO DE 2020, NO N.º 9 DO TOP DAS CANÇÕES COM MAIS VERSÕES (O PRIMEIRO LUGAR PERTENCE A YESTERDAY, DOS BEATLES).