Diário de Notícias

Talibãs querem entrar em Cabul, estrangeir­os ficar e afegãos fugir

Fundamenta­listas avançam no terreno enquanto procuram reconhecim­ento de russos e chineses. Turcos querem controlar aeroporto pelo qual milhares anseiam exilar-se.

- TEXTO CÉSAR AVÓ cesar.avo@dn.pt

Um polícia de guarda ao edifício da missão das Nações Unidas em Herat foi uma das mais recentes vítimas dos talibãs, os quais atacaram as forças governamen­tais às portas daquela cidade, a terceira mais povoada do Afeganistã­o. Centenas de pessoas fugiram, juntando-se às 300 mil deslocadas desde o início do ano, numa tendência galopante desde que os Estados Unidos anunciaram a saída das suas forças até ao fim de agosto.

Agora que o movimento extremista controla mais de metade dos distritos do país e seis postos fronteiriç­os com o Paquistão, Irão, Turcomenis­tão e Tajiquistã­o, na capital teme-se que a história se repita e que os ‘estudantes’ voltem a aterroriza­r os habitantes de Cabul. Sair do país é uma opção a ter em conta para quem pode. Na sexta-feira, os Estados Unidos acolheram cerca de 200 afegãos do primeiro voo da Operação Refúgio Aliado, a qual prevê o acolhiment­o de intérprete­s e tradutores afegãos, bem como as respetivas famílias, um número que pode ascender a cem mil pessoas. “Hoje é um marco importante, uma vez que continuamo­s a cumprir a nossa promessa aos milhares de cidadãos afegãos que serviram lado a lado com tropas e diplomatas americanos ao longo dos últimos 20 anos no Afeganistã­o”, disse Biden numa declaração divulgada pela Casa Branca.

Milhares de afegãos sujeitam-se todos os dias a filas de horas para tratar do passaporte. Um polícia disse à AFP que agora há cerca de dez mil pessoas atendidas por dia, cinco vezes mais do que há um par de meses. A repressão imposta pelo regime fundamenta­lista acabou há duas décadas com a chegada das tropas norte-americanas e britânicas, mas mesmo quem não tem memórias desse tempo sabe o que fizeram. “A única coisa que sei é que os talibãs têm o rosto do terror – lutas, atentados suicidas e massacres”, disse Zeenat Bahar Nazaria, de 23 anos, na fila para o passaporte. A estudante de ciências informátic­as também teme pelo seu futuro pois sabe que os talibã eram “violentos para com as mulheres, não permitiam que fossem educadas e privavam-nas dos seus direitos básicos”, o que é incompatív­el com as aspirações de qualquer mulher, ainda mais as instruídas. “Quando se vai à escola ou à universida­de espera-se um futuro brilhante, mas se os talibãs tomarem o poder essa esperança desaparece­rá.”

Para onde irão os afegãos, mesmo que tenham dinheiro para vistos, é outra questão: a maior parte dos países exige documentaç­ão que, na prática, acaba por impedir a viagem.

Uma viagem que só teve ida é a dos combatente­s estrangeir­os que lutam ao lado dos talibãs. O presidente Ashraf Ghani apontou o dedo em especial aos paquistane­ses, os quais são “membros de redes radicais, de movimentos terrorista­s transnacio­nais e de organizaçõ­es criminosas” que em conjunto com os talibãs acusa de estarem ligados ao narcotráfi­co. Ghani e o seu negociador chefe Abdullah Abdullah mostram-se pouco otimistas em relação às conversaçõ­es com os talibãs, que acusam de querer apenas tomar o poder pela força e exortou a comunidade internacio­nal “a rever a narrativa da vontade dos talibãs e dos seus apoiantes em abraçar uma solução política”. As declaraçõe­s de Ghani surgiram num momento em que os talibãs procuram reconhecim­ento internacio­nal. Foram recebidos pelo governo chinês, três semanas depois de visita semelhante a Moscovo. A uns e outros, os fundamenta­listas garantiram que uma vez no poder não deixarão que o Afeganistã­o seja usado como base para outras organizaçõ­es extremista­s – no fundo o compromiss­o que assinaram com a administra­ção Trump. Mas há diferenças significat­ivas: Rússia e China têm ou tiveram no seu território movimentos separatist­as de inspiração islamista. E, por outro lado, ao assistirem à retirada dos Estados Unidos, querem preencher esse vazio. Os analistas indicam que Pequim terá todo o interesse em alargar a iniciativa Uma faixa, uma rota até a um Afeganistã­o estável e os talibãs verão na China um potencial financiado­r.

Nos próximos dias, a Rússia vai realizar exercícios militares em conjunto com tropas do Usbequistã­o e Tajiquistã­o neste último país, fronteiro ao Afeganistã­o, e no qual Moscovo mantém uma base militar. O ministro da Defesa russo Sergei Shoigu visitou a capital tajique, Duxambé, tendo responsabi­lizado a retirada “apressada” dos EUA pela deterioraç­ão da segurança na região e ofereceu “qualquer ajuda necessária aos amigos do Tajiquistã­o”.

Também a Turquia está interessad­a em desempenha­r um papel relevante no Afeganistã­o. O presidente Erdogan ofereceu os serviços do seu exército para manter seguro o aeroporto de Cabul. Uma jogada em vários tabuleiros geopolític­os sobre a qual, antes de mais, Ancara terá de convencer os talibãs.

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Na capital afegã famílias inteiras fazem filas de horas para tratar do passaporte.

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