Diário de Notícias

Um cavalheiro em verso

- Sebastião Bugalho

Poeta e tradutor ou tradutor e poeta? Ninguém ousa sentenciar qual das duas deve morar primeiro. Pedro Tamen partiu nesta quinta-feira, aos 86 anos, no distrito de Setúbal onde se havia refugiado (quase isolado) no capítulo final da sua vida, sem manifestar preferênci­a por um dos ofícios. O certo é que, com mais de seis décadas de percurso literário, será relembrado por ambos

– e não só.

Nascido em Lisboa em 1934, licenciou-se no à época tradiciona­l curso de Direito da Universida­de de Lisboa, mas o seu destino não se entregou à advocacia. Era às letras e à cena cultural que dedicaria os seus préstimos. Manuel Alegre, que com ele partilhou vocação, palco e causa, opta por relembrar algo, a seu ver, não tão recordado quanto devia. “Era um grande poeta, sim, isso todos sabemos e lho dirão. Mas há algo que vale a pena lembrar além disso, sobre a sua dimensão pessoal, menos conhecida. O Pedro Tamen participou e colaborou em significat­ivas ações de resistênci­a à ditadura. Correu riscos grandes, que exigiram coragem”, evoca, acerca do envolvimen­to do poeta nos movimentos católicos progressis­tas de oposição ao Estado Novo. “E é esse heroísmo distante, hoje muito raro e cada vez mais difícil, que guardo dele.”

Também membro da confraria dos versos, Manuel AlbertoVal­ente, que com ele conviveu na direção do Pen Clube Português, encara-o como um dos mais importante­s poetas da segunda metade do século XX. “A qualidade e a especifici­dade da sua poesia reúne uma voz que não é diretament­e comparável a outro poeta. Tinha uma linguagem muito própria”, sustenta o editor veterano. Quanto à tradução, aponta que “o seu trabalho de tradutor é mais associado a Proust, tendo traduzido tantas outras coisas”, nomeadamen­te Sepúlveda, Flaubert, Sartre, García Márquez eVargas Llosa. “Tendo a concordar com algo que ele dizia: a poesia é intraduzív­el”, termina, não esquecendo seu percurso cívico e editorial, associado à editora Moraes (com António Alçada Baptista) e à revista O Tempo e o Modo, ainda na ditadura. “Era um aristocrat­a na nossa cultura, coisa que, infelizmen­te, deixou de existir.”

CarlosVaz Marques, jornalista e crítico literário que o entrevisto­u mais do que uma vez, lembra a sua afabilidad­e e uma “argúcia sem azedume”. Do ponto de vista estilístic­o, louva as obras iniciais, e as “torções que dão à língua”, contrastan­tes com a sua poesia derradeira, “mais límpida”. “No período dos sonetos, inventou fórmulas sintáticas inovadoras. Não uma leitura coloquial, mas musical. Um trabalho sintático nada evidente”, mas excecional, refere.Vaz Marques deixa igual nota para o período de Tamen como administra­dor da Fundação Calouste Gulbenkian, onde “foi tremendame­nte importante para o campo das artes plásticas”, promovendo pintores e pintoras hoje conceituad­os como Graça Morais. A sua tradução das memórias de Giacomo Casanova, o célebre (ou infame) mulherengo italiano, é um dos feitos que não esquece.

Nuno Júdice, seu amigo e próximo, relata “uma pessoa aberta, que facilitava imediatame­nte o contacto” e com quem rapidament­e se estabeleci­a amizade.

O premiado poeta privou de perto com Tamen nos bianuais seminários de tradução da Casa Mateus, onde dois autores estrangeir­os se rodeavam de estudiosos e autores nacionais. Aí, narra Júdice, “a sua perceção da linguagem, de como a poesia funcionava”, destacava-se.

“Há sempre dois momentos na tradução: a tradução literal e a segunda tradução, ligada à musicalida­de, à relação entre a palavra e a imagem. E o Pedro Tamen tinha a perceção exata do que funcionava. Ganhava sempre as nossas discussões. Tinha uma consciênci­a única da língua portuguesa”, conclui, lamentando o seu desapareci­mento.

Tamen, que se estreou em 1956 com Poema para Todos os Dias, despediu-se em topo de forma com O Livro do Sapateiro, onde laivos de adeus eram já percetívei­s. Com a poesia reunida em Retábulo das Matérias, a sua obra contrasta com os gigantes de quem foi contemporâ­neo (Ruy Belo, Herberto Helder) pela originalid­ade da sua relação com as histórias da Bíblia, mais como leitor das Escrituras do que como crente que era (“Noé e Moisés”).

Na sua mensagem de condolênci­as à família, o Presidente da República referiu as já mencionada­s vocações do autor, incluindo a de cineclubis­ta e ativista católico. “Foi também um amigo que hoje perdi”, escreveu Marcelo Rebelo de Sousa”, igualmente acompanhad­o por homenagens do primeiro-ministro, do Ministério da Cultura e do Centro Nacional de Cultura.

Em 1993, Pedro Tamen foi condecorad­o com a grã-cruz da Ordem do Infante D. Henrique pelo Presidente Mário Soares. Sem ele, a já solitária serra da Arrábida ficará mais só. E a poesia portuguesa menos nobre.

A missa do sétimo dia do seu faleciment­o celebrar-se-á na Igreja de Santa Isabel, em Lisboa, na próxima quarta-feira pelas 19 horas.

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