Um cavalheiro em verso
Poeta e tradutor ou tradutor e poeta? Ninguém ousa sentenciar qual das duas deve morar primeiro. Pedro Tamen partiu nesta quinta-feira, aos 86 anos, no distrito de Setúbal onde se havia refugiado (quase isolado) no capítulo final da sua vida, sem manifestar preferência por um dos ofícios. O certo é que, com mais de seis décadas de percurso literário, será relembrado por ambos
– e não só.
Nascido em Lisboa em 1934, licenciou-se no à época tradicional curso de Direito da Universidade de Lisboa, mas o seu destino não se entregou à advocacia. Era às letras e à cena cultural que dedicaria os seus préstimos. Manuel Alegre, que com ele partilhou vocação, palco e causa, opta por relembrar algo, a seu ver, não tão recordado quanto devia. “Era um grande poeta, sim, isso todos sabemos e lho dirão. Mas há algo que vale a pena lembrar além disso, sobre a sua dimensão pessoal, menos conhecida. O Pedro Tamen participou e colaborou em significativas ações de resistência à ditadura. Correu riscos grandes, que exigiram coragem”, evoca, acerca do envolvimento do poeta nos movimentos católicos progressistas de oposição ao Estado Novo. “E é esse heroísmo distante, hoje muito raro e cada vez mais difícil, que guardo dele.”
Também membro da confraria dos versos, Manuel AlbertoValente, que com ele conviveu na direção do Pen Clube Português, encara-o como um dos mais importantes poetas da segunda metade do século XX. “A qualidade e a especificidade da sua poesia reúne uma voz que não é diretamente comparável a outro poeta. Tinha uma linguagem muito própria”, sustenta o editor veterano. Quanto à tradução, aponta que “o seu trabalho de tradutor é mais associado a Proust, tendo traduzido tantas outras coisas”, nomeadamente Sepúlveda, Flaubert, Sartre, García Márquez eVargas Llosa. “Tendo a concordar com algo que ele dizia: a poesia é intraduzível”, termina, não esquecendo seu percurso cívico e editorial, associado à editora Moraes (com António Alçada Baptista) e à revista O Tempo e o Modo, ainda na ditadura. “Era um aristocrata na nossa cultura, coisa que, infelizmente, deixou de existir.”
CarlosVaz Marques, jornalista e crítico literário que o entrevistou mais do que uma vez, lembra a sua afabilidade e uma “argúcia sem azedume”. Do ponto de vista estilístico, louva as obras iniciais, e as “torções que dão à língua”, contrastantes com a sua poesia derradeira, “mais límpida”. “No período dos sonetos, inventou fórmulas sintáticas inovadoras. Não uma leitura coloquial, mas musical. Um trabalho sintático nada evidente”, mas excecional, refere.Vaz Marques deixa igual nota para o período de Tamen como administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, onde “foi tremendamente importante para o campo das artes plásticas”, promovendo pintores e pintoras hoje conceituados como Graça Morais. A sua tradução das memórias de Giacomo Casanova, o célebre (ou infame) mulherengo italiano, é um dos feitos que não esquece.
Nuno Júdice, seu amigo e próximo, relata “uma pessoa aberta, que facilitava imediatamente o contacto” e com quem rapidamente se estabelecia amizade.
O premiado poeta privou de perto com Tamen nos bianuais seminários de tradução da Casa Mateus, onde dois autores estrangeiros se rodeavam de estudiosos e autores nacionais. Aí, narra Júdice, “a sua perceção da linguagem, de como a poesia funcionava”, destacava-se.
“Há sempre dois momentos na tradução: a tradução literal e a segunda tradução, ligada à musicalidade, à relação entre a palavra e a imagem. E o Pedro Tamen tinha a perceção exata do que funcionava. Ganhava sempre as nossas discussões. Tinha uma consciência única da língua portuguesa”, conclui, lamentando o seu desaparecimento.
Tamen, que se estreou em 1956 com Poema para Todos os Dias, despediu-se em topo de forma com O Livro do Sapateiro, onde laivos de adeus eram já percetíveis. Com a poesia reunida em Retábulo das Matérias, a sua obra contrasta com os gigantes de quem foi contemporâneo (Ruy Belo, Herberto Helder) pela originalidade da sua relação com as histórias da Bíblia, mais como leitor das Escrituras do que como crente que era (“Noé e Moisés”).
Na sua mensagem de condolências à família, o Presidente da República referiu as já mencionadas vocações do autor, incluindo a de cineclubista e ativista católico. “Foi também um amigo que hoje perdi”, escreveu Marcelo Rebelo de Sousa”, igualmente acompanhado por homenagens do primeiro-ministro, do Ministério da Cultura e do Centro Nacional de Cultura.
Em 1993, Pedro Tamen foi condecorado com a grã-cruz da Ordem do Infante D. Henrique pelo Presidente Mário Soares. Sem ele, a já solitária serra da Arrábida ficará mais só. E a poesia portuguesa menos nobre.
A missa do sétimo dia do seu falecimento celebrar-se-á na Igreja de Santa Isabel, em Lisboa, na próxima quarta-feira pelas 19 horas.